Filhos ditadores: “Foi você que me pariu, agora me aguenta.”

Por Teresa Campos

O homem, de sorriso simpático, sentado à nossa frente num hotel da baixa lisboeta, é dono de um currículo que (quase) dispensa apresentações: doutorado em Psicologia e Ciências da Saúde, foi o primeiro provedor de Menores em Espanha e o primeiro presidente da Rede Europeia de Provedores de Menores. Em 2006, Javier Urra lançou O Pequeno Ditador. O livro foi um êxito de vendas: 200 mil exemplares entre Espanha, Portugal e Argentina. No entretanto, fundou um centro (RecUrra), a poucos quilómetros de Madrid, onde recebe pais e filhos em conflito. Dez anos e vários livros depois, volta para apresentar O Pequeno Ditador Cresceu. E sublinhar a ideia de que a tirania dos filhos se combate aqui e agora e que de nada vale enfiar a cabeça na areia. “Dê-se-lhes”, salienta o espanhol, “critério, coerência, capacidade de amar, de sancionar, de dizer ‘aqui e agora não’. De dar o exemplo: ‘Se eu não faço, tu também não.’ Se a criança não encontra coerência, sente-se a vaguear e fica perdida. Já não sabe onde está”.

Escreve que a família não é uma democracia e que alguém tem de fazer o papel de adulto. Do que falamos quando diz que é preciso erradicar o mito da harmonia familiar?

Veja: as pessoas idealizam as férias mas acontece que as famílias se separam sobretudo depois das férias, seja no verão ou no Natal. É um clássico. É quando passam mais tempo juntos, quando são obrigadas a conviver. Quando nos cruzamos alguns momentos no dia a dia, tudo se dilui. O lar é um espaço pequeno, em que nos mostramos como somos, não é o mesmo quando temos visitas. E depois adotamos a postura de sermos sempre sinceros. Poderíamos mesmo viver assim, sem a mentira, sem o esquecimento?

Defende que melhor coisa que os pais podem dar aos seus filhos é tempo, não só qualitativo mas também quantitativo. Acaba-se esta ideia que tem vingado de que interessa é a qualidade do tempo?

Não quero que fique com a ideia de que os pais não fazem muito, porque fazem. E falam com os filhos, muito mais do que antigamente…

Mas parece-lhe que falam demasiado…

Sim, demasiado. É sempre importante que haja diálogo. Mas às vezes os pais intentam nessa ideia peregrina de contar aos filhos como eram os seus sonhos e qual a sua experiência quando eram adolescentes. Já se questionaram para quê? E se os filhos querem ouvi-lo? A maioria não. Pensa que aquele é o seu pai, ou a sua mãe, e é isso que quer que seja. Para chocar contra ele. Que é o que é natural. Porque só assim depois se torna independente.

Encontra ligação entre estes jovens problemáticos e as ‘crianças-agenda’, aquelas que frequentam todos os cursos, aprendem todos os instrumentos e idiomas, e têm o tempo todo ocupado?

Sim, falta-lhes tempo para brincar. E tempo bem passado com os pais, com experiências impactantes. Como ir visitar familiares ao hospital ou fazer ações de voluntariado. Mas também de ir acampar ou ver nascer o Sol. Para isso ser marcante não é preciso falar. Para estas coisas todas, lá está, o que é preciso é tempo, é preciso passar tempo com eles. Queremos formá-los para uma sociedade que é muito competitiva. Será que mais formação, e a todo custo, lhes dará felicidade? Veja-se os países nórdicos, ou a Coreia do Sul: têm grandes resultados nos testes de avaliação na escola mas e as pessoas? Vivem bem, são felizes? Essa deve ser a preocupação dos pais. Quem está a jantar melhor, hoje, por exemplo, em Lisboa? Digo-lhe que é quem estiver na melhor companhia!

Como se interessou por estes temas?

Estudei num colégio religioso e houve um momento de que nunca mais me esqueci: um miúdo empurrou a mãe e deixou-a caída no chão. Acabou a tropeçar nela. A mãe levantou a cabeça e perguntou-lhe: ‘Magoei-te?’ Pensei que aquilo era contranatura. Acabei a descobrir que, nestas situações, sofre a mãe, sofre o filho, sofre a sociedade, e é um sintoma de que algo vai mal.

Há dez anos lançou O Pequeno Ditador, agora O Pequeno Ditador Cresceu. O que mudou?

Venderam-se 200 mil livros em Espanha, Portugal e Argentina. Significa que é um problema de todos, uma realidade social. É mais do que uma atualização. Em 2006, os pequenos ditadores dividiam-se em três tipos: crianças com diagnóstico de doença mental, outros com dependências de droga, outros de personalidade hedonista e com grande falhas na educação. Hoje, tenho uma equipa de mais de 100 profissionais, psicólogos e professores, e trabalhamos com 96 jovens, num centro de reeducação. A diferença é que atualmente temos dados.

Os grupos problemáticos são os mesmos?

São. A diferença é que hoje esses pequenos ditadores de que falamos já não são crianças, são adolescentes. Na altura, focámo-nos muito na primeira infância. Agora, sabemos que os maiores problemas se revelam sobretudo na adolescência. Muitos pais deixaram andar e agora veem-se a braços com situações dramáticas. Ao todo, chegaram-nos perto de mil casos, 360 residentes, o resto em ambulatório. Sabemos também que 35 por cento são raparigas e 65 por cento são rapazes. A grande parte chegou-nos perto dos 16 anos, mas é fácil ver que o problema começou quando eram pequenos, quando tinham 4, 5 ou 6 anos. E os pais dizem que não conseguem lidar com eles. E se sentem dificuldade nessas idades, mais tarde então, nem imaginam… Pois não. Vivem embrulhados em pequenas coisas. ‘Ai, como lhe digo que não? Ai, como vai ser? E se o traumatizo? E se o pai ou a mãe não gosta e há outros problemas?’. Vivem com demasiados medos.

Lemos as capas dos jornais e ficamos a pensar: será que a crise não agravou muito a vida destes pais?

Não penso que seja um problema de dinheiro – ou melhor, da falta dele. Não estamos a falar de países como o Sudão ou Angola. Nesse contexto, Portugal é um país rico. E problemas destes repetem-se sobretudo em classes médias, com casa, emprego, etc. São países com poucas crianças, em que os pais tudo fazem para que os filhos tenham tudo.

Pensa que teríamos as mesmas dificuldades com os nossos filhos mesmo se não houvesse qualquer crise?

Sim, creio que sim. As pessoas que nos procuram a pedir ajuda não foram especialmente arrasadas pela crise. A questão é que antigamente ser filho significava agradecer aos pais a vida que lhe tinham dado. Hoje, vemos filhos a dizer aos pais, ou pior, à mãe: ‘Foste tu que me pariste, agora aguenta-me. Eu não pedi para nascer.’

Um pediatra português disse recentemente: os pais têm de parar de ter medo de tudo em relação aos seus filhos. Concorda?

Sim absolutamente. Têm medo que deixem de gostar deles, que fiquem traumatizados.

Será que tem a ver com a forma, provavelmente mais restritiva e autoritária, como esses pais foram educados?

Talvez, mas o problema é terem caído no extremo oposto. Um erro crasso. Decidem que os filhos podem ter toda a liberdade, ao mesmo tempo que os superprotegem, não lhes impondo limites. Não são capazes de lhes dizer que não, receiam que sintam qualquer frustração, meteram na cabeça que a forma como foram educados já não serve. Se calhar era a melhor.

Há um ditado africano que diz que é precisa toda uma aldeia para educar uma criança. Não estamos a exigir demais, a impor demasiada responsabilidade sobre os pais?

Sim, todos fazem falta, porque a verdade é que as crianças precisam de muita coisa. Veja-se: uma dose de espiritualidade, de perdão, de compaixão, de sentido de humor. De dúvidas. Terão de saber que há momentos de tristeza, em que temos de dizer adeus à gente querida. A vida são sentimentos. Têm de ser educados no otimismo e na esperança mas também em ser resilientes, têm de saber que quando corre mal podem sempre dar a volta. Se não vão engrossar os números do suicídio. Porque não têm uma razão para viver, não têm um projeto. Também aderem a causas terroristas, sabemos disso hoje. Encontram depois uma razão para morrer, uma causa, uma sensação de pertença a um grupo. Demos-lhe liberdade mas esta tem de ter limites. Temos de educar para a autonomia com responsabilidade. Fazê-los ajudar e doar do seu a quem não tem, ensiná-los a ser altruístas. E dar valor ao que têm. O mundo não é como o vemos, o mundo somos nós e os outros todos em volta.

O livro começa com esta ideia de que os pais sofrem muito neste processo mas os filhos também. Quer explicar?

Sim, vi muitos pais a chorar porque não conseguem lidar com os filhos. Mas também vi muitos filhos a chorar pela mesma razão. E tanto uns como os outros querem dar-se bem. Vejamos: um violador despersonaliza o seu ato. Não vê ali uma pessoa. Vê um objeto, sobre o qual vai exercer o seu poder. Com estes filhos e estes pais, não é assim. Mas se os pais nem hesitam a assumir que gostam dos filhos, os filhos, sim. Quando lhes perguntamos se se sentem queridos pelos pais, respondem que não sabem. Não se sentem amados pela falta de coerência, por não lhes dizerem que não, por os deixarem fazer tudo. Sentem que é como se não importassem, seja o que for que façam.

O mundo hoje é mais perigoso?

Creio que essa ideia é de quem não faz uso da sua memória. Antigamente, as crianças, os bebés morriam muito mais. O mundo da infância não tinha direitos. Verificamos é que hoje se estendeu a adolescência. Toda a gente quer ser jovem. Tenho 60 anos mas sou novo. E quero viver, viajar…

Nesse cenário, defender que se devia antecipar o direito a votar para os 16 anos parece um pouco contraditório. Qual é a sua ideia?

Não sei se isso, por si, vai fazer com que os jovens se interessem pela política, mas faz com que se tornem cidadãos de pleno direito, que as coisas lhe interessem. Antes, um rapaz de 18 anos era um adulto, hoje é uma criança. Por outro lado, uma pessoa de 80 anos pode votar, um jovem de 17 não. Agora pergunto: Qual deles está, de facto, mais preocupado com o futuro?

‘A mulher que saiu de casa para ir trabalhar’ é várias vezes referenciada no livro e também que ‘as crianças passam muito tempo sozinhas’. Mas antigamente também passavam. Porque agora isso se tornou um problema?

Não estou a culpar as mulheres por terem ido trabalhar. Aponto, sim, o dedo aos homens por não se terem tornado cuidadores. Não há homens enfermeiros. Não há homens educadores de infância. Digo que a sociedade espanhola continua a ver as mulheres como as cuidadores, apesar de todas as leis. Em Portugal é igual: há tempos, numa conferência em Tondela, estariam umas 70 pessoas na assistência. Só dez eram homens. E não digam que é falta de tempo: se amanhã, o tema for carros de Fórmula 1, certamente que a plateia não será a mesma. Quanto à educação, verificamos que é muito igual: estes livros, por exemplo, quem os compra são sobretudo mulheres.

Os pais e as mães queixam-se que o mundo do trabalho não é muito compatível com a vida das famílias. Como se muda isto?

Não temos, como nos países nórdicos, um sistema social de grande apoio aos pais, é verdade. E os pais, muitas vezes, só vêm o lado negro da educação: tem de ir à escola, ao pediatra… É como uma carga. Em vez de verem o filho como um presente da vida.

Poderá ser que isso aconteça porque estes pais vivem muito sozinhos, sem rede?

Os filhos são sentidos como uma uma carga porque se vive tudo ao extremo. Temos de ser super mães, super pais, super profissionais… Se não fazemos, e alguém ao lado parece conseguir, logo ficamos em cheque. Criámos uma sociedade em alarme, à defesa. Por outro lado, os pais hoje querem viver, viajar, conhecer…

Mas têm direito a isso, ou não?

Sim, mas com limites. Nunca se vai conseguir tudo, ver todos os filmes, ler todos os livros. Tem de se optar. Viver é escolher. O tempo que vivemos não é cronológico. É o nosso tempo. Podemos perder tempo, se quisermos.

Acaba a citar Pitágoras: “Educai as crianças e não será preciso castigar os homens”. A Educação pode resolver tudo?

Sim, diria que é imprescindível para o autodomínio, para o respeito. Para que se tenha sentido de humildade. As pessoas dão-se muita importância.

No fundo, parece dizer que o ótimo é inimigo do bom?

Sim, claro. O nosso mundo pode acabar hoje, mas o mundo em si não. Podemos – devemos – educar os filhos para isso. Porque eles viverão o tempo e a vida deles como quiserem. É como temer atentados ou um terramoto. À espera que isso aconteça, vamos viver com medo? Há uns anos, ainda a ETA (organização terrorista basca) estava ativa, e jantava num restaurante sentado de costas para a porta. O meu interlocutor receava que alguém entrasse aos tiros. Perguntei-lhe: ‘E o que queres fazer?’ Não podíamos fazer nada, a não ser jantar.

Texto original de Visão






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