Como o corpo reage a um evento traumático e as consequências que essa memória pode trazer

Viver sem riscos é sorte de poucos: estima-se que 90% da população mundial passará por, pelo menos, um evento potencialmente traumático ao longo da vida. Superar a situação adversa ou ficar marcado por ela é o limiar entre uma situação de estresse e o trauma, que está na raiz de diversos transtornos psicológicos.

— Trauma é uma palavra de origem grega que significa ferida. É uma ruptura psíquica importante, que excede a capacidade de processamento de uma pessoa — explica a psiquiatra Lúcia Helena Freitas, coordenadora do Núcleo de Estresse Traumático do Hospital de Clínicas (Net-Trauma).

Os traumas são situações decorrentes de eventos que, em linhas gerais, envolvem algum tipo de risco, real ou imaginário, à vida ou à integridade física de alguém. Essas situações podem abranger violência física ou psicológica (doméstica, sexual ou urbana) ou serem decorrentes de acidentes ou desastres naturais (como enchentes, tsunamis, vendavais) e afetar um indivíduo em particular ou um grupo. Não é preciso sequer vivê-las ativamente: ver uma situação dessa natureza, como um assalto, pode ser o suficiente para desencadear uma reação traumática.

Com um leque tão abrangente de possibilidades, é natural que a maioria das pessoas tenha contato, ao menos uma vez na vida, com algum episódio abalador. Fisiologicamente, todas terão uma resposta mais ou menos padrão: reações químicas provocarão a liberação de adrenalina e cortisol, hormônios que irão, por meio de estímulos, preparar o corpo para fugir daquela situação ou partir para o confronto.

Depois desse começo um tanto primitivo, entra em cena um elemento complexo e demasiadamente humano: a memória. Quem passa por uma situação adversa pode seguir sua vida sem ser afetado por aquele acontecimento ou ser traído pelas lembranças. A recordação recorrente do fato estressor faz com que, por alguns dias, o corpo volte a ter algumas reações fisiológicas relacionadas a ele, como fadiga, tensão muscular, sobressaltos, taquicardia, náuseas e perda de apetite. A persistência de sintomas como esses configura o trauma.

— Em geral, as pessoas expostas a um evento potencialmente traumático passam a reviver aquela experiência em algum grau, mas a maioria se recupera. É o que chamamos de resiliência — explica o doutor em psiquiatria Rodrigo Grassi-Oliveira, coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Trauma e Estresse (NEPTE), da PUCRS.

Por motivos que a ciência ainda tenta entender, uma pequena parcela das pessoas traumatizadas, em torno de 20%, não consegue superar um trauma. É aí que ele começa a se tornar um risco à saúde, desencadeando transtornos psicológicos.

Quem está mais vulnerável

Os traumas estão na raiz de diversos transtornos psíquicos e endocrinológicos, que vão desde a depressão até a dependência química, passando pela obesidade e pelo Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC).

Os tipos mais comuns de doenças diretamente vinculadas a eles são o Transtorno de Estresse Agudo (TEA) e o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT).

TEA e TEPT funcionam como variações de um mesmo tema: persistência de sintomas como excitabilidade extrema, reviver o evento traumático, amortecimento emocional e fuga de contextos relacionados ao trauma. A diferença básica está no estágio em que se encontram. O estresse agudo é observado quando os sintomas permanecem por mais de três dias depois do evento estressor, enquanto pode ser considerado TEPT quando os mesmos indícios ultrapassam a barreira de um mês e passam a comprometer a rotina do paciente.

— Para desenvolver o TEPT, a pessoa não precisa, necessariamente, passar pela fase de estresse. Algumas vezes, quem sofre um trauma só vai manifestar os sintomas do transtorno meses depois — esclarece a professora Carolina Blaya, da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA).

Não há como saber previamente quem desenvolverá esse e outros tipos de transtornos em função de um evento traumático, mas a ciência já trabalha com algumas pistas.

Elas estão relacionadas, principalmente, ao tipo de evento, à fase da vida em que ocorre e à quantidade de traumas a que se é exposto.

Há uma diferença significativa observada, por exemplo, no efeito de eventos traumáticos coletivos, como desastres naturais, e traumas decorrentes de relações interpessoais, como a violência sexual. Enquanto o índice de pessoas que podem ter transtornos decorrentes do primeiro fica em torno de 20% (sendo menos de 10% relacionados ao TEPT), vítimas de abuso costumam evoluir para um quadro negativo em, pelo menos, 40% dos casos entre as mulheres, e 60% entre os homens. Isso porque costuma ser mais fácil lidar com um fato que foge ao controle geral do que com a ideia de que um semelhante é capaz de praticar um ato cruel.

— Também tem o fato de que, muitas vezes, os traumas interpessoais são experienciados isoladamente. É diferente de quando há um desastre ou uma catástrofe, em que muitas pessoas são atingidas. A percepção de que uma coisa acontece só com você muda um pouco a maneira como você lida com isso — diz Christian Kristensen, que também atua na coordenação do Nepte.

Por estar relacionado à memória, o trauma costuma ter efeito cumulativo. Pessoas que passam por mais traumas, independentemente do tipo, também mostram-se mais predispostas a, em algum momento, desenvolverem um transtorno. Outro fator de risco é a idade em que se é exposto a um evento traumático: entre os poucos consensos na área, está a ideia de que, quanto mais cedo isso ocorre, piores podem ser as consequências para o indivíduo afetado.

— Hoje sabe-se que uma parte relevante de casos de dependência química está relacionada a traumas de infância. Os estudos mostram que o fato de ser exposto muito precocemente a um trauma reprograma a pessoa para o resto da vida, alterando o curso do desenvolvimento das estruturas psíquicas. Fica como uma cicatriz — diz Rodrigo Grassi-Oliveira, que estuda traumas precoces.

“Tinha dias em que eu passava tremendo”

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Nádia* desenvolveu transtorno de estresse pós traumático depois da morte do maridoFoto: Félix Zucco / Agencia RBS

Nádia* pede licença para acender um cigarro enquanto conversa ao telefone com a reportagem. A tragada serve como uma espécie de introdução a um assunto sobre o qual aprendeu a falar há pouco tempo: o suicídio do marido, ocorrido há quase cinco anos.

O luto pela morte inesperada do companheiro, que sofria de depressão, culminou no consultório médico quando, anos depois, ela foi finalmente diagnosticada com Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT). O que viveu de julho de 2011 até buscar ajuda especializada, em 2015, foi um período marcado pela tentativa de retomar sua vida sufocada por sentimentos que não podia controlar.

— Foi uma coisa maior do que eu podia explicar. Não fazia ideia de que uma pessoa depressiva podia chegar a esse ponto — lembra.

Assimilar o tipo de violência que pôs fim a uma relação de duas décadas sem chance de despedida não foi seu único desafio. Meses depois do ocorrido, que chegou a afastá-la do trabalho, soube que a filha, então com 12 anos, tinha sido diagnosticada com depressão.

Com recursos limitados, o tratamento da menina tornou-se prioridade. A tentativa de estabelecer sua rotina sozinha, a despeito da dor, esbarrava na ansiedade e no medo, que passaram a ser companhia constante, e as reações sobressaltadas tornaram-se frequentes.

— Tinha dias em que eu passava tremendo. Lembro que um dia estava tomando um café em uma lancheria perto do trabalho e alguém, atrás de mim, deixou cair uma mala. Me encolhi no chão e comecei a gritar, achando que era tiro. Nunca vi arma nem ninguém atirar na vida, mas pensei isso na hora — conta.

Ciente de que precisava de ajuda, Nádia descobriu, no ano passado, o Núcleo de Estudo e Pesquisa de Trauma e Estresse da PUCRS. A chance de tratamento gratuito a poucas quadras de casa foi uma motivação a mais para encarar sem restrições a nova etapa.

Os meses que sucederam o começo da terapia não foram menos dolorosos. Isso porque, para tratar as feridas antigas, precisou deixá-las expostas novamente. Falar sobre a situação que não relatava sequer aos amigos foi apenas uma parte de um processo de libertação no qual ainda trabalha. Mesmo depois da alta médica, no fim de 2015, pretende continuar o tratamento psicológico que a permitiu não só conseguir conversar sobre o trauma do passado, mas projetar um futuro que, por algum tempo, parecia inimaginável.

— O que mais me deu força foi saber que minha filha precisava de mim. Somos tipo bêbadas em recuperação: tentamos uma ajudar a outra. Antes, eu não sentia vontade, não tinha esperança, não olhava pra frente, e sufocava minha filha tentando protegê-la. Hoje, tenho certeza de que vamos voltar a ser felizes. E acredito que a gente ainda vai ser muito feliz.

*O nome foi alterado a pedido da entrevistada

Terapia e vínculos sólidos ajudam no tratamento

Como qualquer doença, o caminho mais recomendado para trabalhar os transtornos decorrentes de traumas passa pelo consultório médico. No caso específico deles, provavelmente, contará com o acompanhamento de psicólogos ou psiquiatras.

Até o momento, o método mais utilizado no tratamento, pelo menos inicialmente, é a terapia cognitivo-comportamental focada no trauma. Nas sessões, que costumam durar alguns meses, são trabalhadas questões como o entendimento do trauma e uma posterior reexposição a ele, com o objetivo de mudar a relação da pessoa com suas lembranças.

O paciente aprende, pouco a pouco, a “desligar” as memórias ruins relacionadas ao evento traumático.

Durante esse processo, pode ou não haver a prescrição de remédios, que também podem variar de caso para caso. A parcela que responde aos medicamentos, no entanto, é baixa: menos de um terço dos pacientes. Também há controvérsias sobre o tipo de medicação mais adequada para utilizar durante o tratamento de transtornos relacionados ao trauma.

— Há estudos que questionam o uso de alguns tipos de ansiolíticos, porque eles poderiam, inclusive, acentuar alguns dos sintomas — pondera Carolina Blaya.

Se a validade do uso de medicamentos nesses casos ainda depende de pesquisas mais profundas, um fator externo pode atuar, comprovadamente, como um aliado no tratamento e na prevenção de doenças derivadas de traumas. O chamado suporte social, que consiste em ter vínculos fortalecidos, seja com familiares ou amigos, é determinante para superar eventos traumáticos de modo geral, e transtornos em particular.

— O Estado também deve preparar as pessoas para isso. Sabemos que crianças em situação de vulnerabilidade social podem ter benefícios com programas de reinserção social, como estimulação de exercícios físicos ou de atividades artísticas. Ter apoio familiar, uma rede de amigos ou acesso a serviços de saúdes que deem apoio e respeitem o processo de trauma pode evitar que uma pessoa progrida para um quadro mais grave — diz o psiquiatra Rodrigo Grassi-Oliveira.

Modificação positiva na vida

Quando o assunto é trauma, esquecer é, provavelmente, o fim mais improvável. Por isso, o processo de cura, no caso das doenças relacionadas a esse tipo de situação, passa por uma espécie de reinterpretação das memórias ligadas ao evento traumático.

Mas nem só na superação do evento traumático se encerra o tratamento.

— Na década de 1970, começou a se perceber que algumas pessoas que passavam por evento estressor potencialmente traumático e expressavam um sofrimento importante acabavam tendo uma modificação positiva na vida — diz Christian Kristensen.

Um exemplo que pode ajudar a compreender o chamado crescimento pós-traumático é o caso de Diza e Régis Gonzaga. Após a morte do filho em um acidente de trânsito, nos anos 1990, eles criaram a Fundação Thiago de Moraes Gonzaga, ONG focada na conscientização e prevenção de casos semelhantes. Outras pessoas evoluem de forma mais sutil: ressignificam alguns valores, desenvolvem sua espiritualidade ou simplesmente reforçam laços com amigos, cônjuges ou familiares.

A situação, embora desejada, não está ao alcance de todos. Estudos mostram que esse tipo de transformação está relacionada a algumas características de personalidade específicas e, novamente, o suporte social se mostra significativo para esse tipo de progressão.

— A gente tem estudado isso mais a fundo, mas a indução desse processo ainda não é tão clara. Estamos tentando descobrir como fazer para favorecer isso — conta o pesquisador.

“Estava tudo errado: muito choro, crises frequentes”

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Geneci perdeu a enteada no incêndio da boate Kiss, em Santa MariaFoto: Tadeu Vilani / Agencia RBS

Enquanto milhares choravam a perda de filhos, irmãos, primos e amigos em uma das maiores tragédias do Rio Grande do Sul, em 2013, Geneci Steinhaus procurava um lugar para encaixar a dor da perda da enteada Clarissa Lima Teixeira, então com 26 anos. Natural de Porto Alegre, a estudante de Letras da UFSM foi um dos 242 jovens que morreram no incêndio da boate Kiss, em janeiro de 2013, em Santa Maria.

— A gente tinha uma relação muito boa. Quando comecei a namorar com o pai dela, ela tinha 12 anos, e sempre foi a filha que esteve mais próxima de mim. Mas eu era a madrasta. A madrasta pode sentir tanto quanto os pais, mas não é igual a eles — relata a atendente, que foi a responsável por informar o companheiro da morte de Clarissa.

Diante do abatimento do marido e de outras duas enteadas, que viviam com o casal, Geneci optou por sufocar os próprios sentimentos em relação ao acontecimento. Não queria deixar seu luto sobrepor-se ao da família.

Mas a opção solitária não a ajudou a superar a tristeza e ainda maximizou sua angústia. A dor silenciosa refletiu-se até no ar que respirava: sentia cheiro de tecido queimado em toda parte. Para tentar inutilmente não viver flashbacks, passou a evitar saídas e eventos sociais.

Três meses depois, quando o comportamento recluso já afetava, inclusive, as relações de trabalho, recorreu ao suporte psicológico disponibilizado aos sobreviventes e familiares de vítimas da tragédia na Kiss.

— Eu sentia falta de apoio. Estava tudo errado: muito choro, crises frequentes. Não conseguia ficar sozinha — recorda.

O tratamento de Geneci foi o mais longo da família: frequentou as sessões de terapia entre 2013 e 2015. Admite que o tempo não foi suficiente para conseguir normalizar completamente sua rotina. Ainda evita ir a casas noturnas e não teve coragem de voltar a Santa Maria depois do enterro de Clarissa — que foi sepultada no município da Região Central.

Por outro lado, aprendeu a comemorar pequenos avanços, como a retomada do diálogo com o marido e o fim do uso de medicamentos. No ano passado, deram um passo mais ousado: a imagem da enteada, antes guardada para evitar lembranças traumáticas, voltou à parede da casa onde o casal vive, na zona sul de Porto Alegre.

Sua percepção sobre a tragédia também se modificou. A revolta já não faz mais parte do rol de sentimentos que nutre sobre o adeus precoce, que ao soletrar seu sobrenome, no fim da entrevista, resume em uma palavra:

— É Steinhaus. Com S, de saudade.

Como buscar ajuda gratuita

Núcleo de Estudos e Pesquisa de Trauma e Estresse (Nepte)
Contato: (51) 3353-4898 e [email protected]
Como proceder: é preciso agendar uma avaliação por telefone ou e-mail.

Núcleo de Estresse e Trauma (Net-Trauma)
Contato: Hospital de Clínicas de Porto Alegre – Zona 8 (Rua Ramiro Barcelos, 2.350)
Como proceder: o serviço é destinado a vítimas de violência urbana ou doméstica, a partir dos 18 anos. Interessados podem ir ao local às quartas-feiras, a partir das 8h, com encaminhamento médico e carteirinha do Sistema Único de Saúde (SUS).

TEXTO ORIGINAL DE ZH VIDA






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