‘Dar voz à criança não pode significar que ela esteja no comando’, dizem psicólogas

Por Amanda Mont’Alvão Veloso

As cenas são até frequentes: crianças que reinam em seus lares e alteram completamente a rotina – e o tempo de sono – dos pais , além de definir o que entra e o que sai do carrinho do supermercado ou se vai ser possível fazer a tão planejada viagem.

Colocar os filhos em um pedestal – a psicanalista Marcia Neder chama isso de infantolatria  – tem mostrado seus dissabores e reveses já há algum tempo. Principalmente se o assunto for limites – ou falta de limites, assim como a dificuldade com as frustrações e o desrespeito aos pais.

O que teria ocorrido em nossa cultura para que as situações acima se tornassem tão conhecidas e angustiantes? A estrutura familiar se tornou mais democrática, as mulheres conquistaram direitos e, perante a lei, as crianças deixaram de ser objetos de tutela e passaram a ser sujeitos de direito. Ainda que essas transformações estejam em processo, houve muitas conquistas — e somos todos cidadãos diante do Estado.

O efeito disso é uma ampliação da liberdade de fazer escolhas e ter uma vida mais criativa e satisfatória, explicam as psicólogas Lulli Milman e Julia Milman, autoras de A vida com crianças, lançado recentemente pela editora Zahar. Porém, há também efeitos que demandam atenção, como a sensação de desorientação na criação dos filhos e uma certa horizontalização das relações, o que abre caminho para que se deixem na mão de crianças decisões que devem caber aos pais.

“As crianças precisam dos adultos para viver, física e subjetivamente”, enfatizam Lulli e Julia, que são mãe e filha.

“Dar voz à criança não pode significar que ela esteja no comando. Ela não tem instrumentos físicos nem psíquicos para assumir esse papel; então, o adulto deve se responsabilizar diante da criança. De outro modo, ela se sente desamparada.”

As crianças são capazes de entender a importância das regras a partir da observação de que os adultos também estão submetidos a isso

No livro, as autoras levantam questões, dão dicas e sugestões sobre assuntos variados. Todos eles têm em comum os cuidados de um adulto com as crianças: guarda compartilhada; vantagens e desvantagens de creches, avós ou babá; o tempo de uso de chupeta e mamadeira; amamentação; dormir com ou sem os pais; problemas de alimentação; bons modos à mesa; brigas; castigos; sexualidade infantil; falar de sexo com crianças; bullying e a relação com celulares e internet.

Em um contexto de queixas frequentes quanto ao desrespeito dos filhos, as estratégias de educação e punição são repensadas o tempo todo, em substituição às surras e ações muito severas, bastante utilizadas no passado.

Segundo as psicólogas, é esperado que a criança queira colocar seus desejos, preferências, insatisfações e resistências ao modo do adulto educar e cuidar. O problema é quando as imposições da criança representem perigo, não sejam possíveis de realizar ou destoem do planejamento do adulto.

“Nesses momentos é preciso ser firme e fazer valer a sua palavra. A relação de respeito caminha junto com a construção da confiança.”

Não se pode ignorar, porém, as diversas situações em que os próprios adultos infringem as regras de convivência e as limitações (não podemos fazer tudo que queremos). É o famoso exemplo vindo dentro de casa. Se a criança testemunha os pais burlando uma regra, é natural que ela repita o que foi feito.

“A convicção do adulto de que não é possível satisfazer todos os nossos desejos é muito importante na transmissão dos limites para as crianças. Elas são capazes de entender a importância das regras a partir da observação de que os adultos também estão submetidos a isso.”

Falta de tempo

O tempo de convívio com os filhos, muitas vezes sacrificado pelos compromissos com o trabalho e por uma rotina cheia de atividades do adulto, é outro problema recorrente nas relações familiares. Muitas vezes a compensação aparece na forma de um brinquedo novo, ou de um afrouxamento nas broncas necessárias.

As psicólogas são enfáticas: o tempo compartilhado não é substituído pelos presentes e não compensa a ausência dos adultos responsáveis pela criança.

“Vivemos em um mundo de consumo exacerbado e da falsa impressão de que é possível substituir as relações humanas pela relação com as coisas, como se a satisfação viesse do que temos.”

O novo brinquedo, até então desejadíssimo, fica desinteressante em pouco tempo.

“Basta pensarmos em nós mesmos para saber por quanto tempo e qual a qualidade da satisfação que temos quando adquirimos algum objeto, mesmo que estivéssemos desejando muito tê-lo. Com a criança também é possível observar facilmente quanto tempo dura a interação com um novo brinquedo.”

Para as autoras, a presença efetiva e afetiva do adulto é imprescindível para o desenvolvimento saudável da criança.

Criar os filhos é, portanto, uma missão declaradamente difícil e longe da idealização que vemos na propaganda e nas novelas. Certamente não é automático ou sem influência do dia a dia de cada adulto. “É preciso pensar nas escolhas que fazemos, no nosso investimento [afetivo] no filho que escolhemos ter”, completam as psicólogas.

Se o tempo não é problema para algumas famílias, a resistência aos programas familiares é um obstáculo para outras. Compartilhar momentos prazerosos pode ser uma solução, sugerem as autoras.

É muito difícil obrigar um filho adolescente a estar junto se não forem promovidos momentos prazerosos, elas explicam. Os pais devem descobrir o que é bom fazer junto. Comer? Ver um filme? Ir à praia? “À medida que estes momentos são estabelecidos, a repetição começa a ser desejada”, demonstram.

Buscar os motivos da insatisfação em estar juntos, especialmente quando há adolescentes, é importante. “É preciso ouvir os filhos sobre o que têm vontade de fazer, mas não deve deixar que a decisão fique só na mão deles”, ponderam.

Imagem de capa: Shutterstock/Halfpoint

TEXTO ORIGINAL DE BRASILPOST






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