A doença mental como desculpa para a maldade

Por Alexandre A. Loch

Há uma semana, Stephen Paddock, munido de armamento pesado, matou 59 pessoas e deixou mais de 500 feridos em Las Vegas. Na mesma semana, não tão distante assim, Eduardo e Ieda Martins foram julgados e condenados em São Paulo. O crime: matar e esquartejar o zelador do prédio onde moravam, por conta de uma briga por vaga de garagem. Também na semana passada, o vigia Damião Soares dos Santosateou fogo em uma sala de creche em Minas Gerais, tirando a própria vida e levando 10 crianças entre 4 e 6 anos à morte.

O que estas ocorrências têm em comum, além do óbvio, que é tirar vidas de pessoas inocentes de maneira cruel? Todas são fruto de uma coisa: da maldade humana.

Poderíamos incorrer aqui em uma discussão sobre ética e moral acerca do que é o bem e o que é o mal, mas os fatos dispensam tal perda de tempo. Ainda que, em certas leis, se preveja o assassinato em determinadas ocasiões (do código de Hamurabi até as sentenças de morte dos dias de hoje), não há dúvida de que vemos, nos eventos citados, atos de extrema maldade. Tirar a vida de pessoas inocentes, de seres humanos indefesos, requintes de crueldade, características que não deixam dúvidas sobre a perversidade das ocorrências.

Mas o mal nos assusta.

É difícil concebermos que o ser humano é mau. Não o queremos admitir. Thomas Hobbes, no Leviatã, teorizou que o homem é um bicho naturalmente mau. Deixados ao estado natural, somos egoístas, vis, seguimos nossos próprios desejos e vamos achar uma coisa boa ou ruim simplesmente por ela estar em acordo ou desacordo com aquilo que queremos. Não importa o outro. “O homem é o lobo do homem”.

Daí a necessidade de leis e outras acima dos homens para podermos viver em sociedade. Hobbes recebeu duras críticas à sua filosofia na época. Se também não gostar de Hobbes, vá para a ficção e veja Saramago em Ensaio sobre a cegueira para vislumbrar um pouco da maldade do ser humano.

Mas não digerimos muito bem o mau. Então conjecturamos. O que poderia ter impedido o casal esquartejador? O que poderia ter impedido o atirador de Las Vegas? O que poderia ter impedido o incendiário?

Bom, a culpa do atirador é da legislação americana sobre armas. Certamente; uma pessoa que leva mais de 20 armamentos pesados para um quarto de hotel, se não tivesse a possibilidade de comprá-las, iria atirar flores pela janela. Seguramente aprontaria alguma outra coisa. Lembremos dos assassinos ao volante do Estado Islâmico na Europa.

Aliás, outra coisa que logo levantaram como hipótese, o terrorismo religioso. Seria o islamismo uma coisa sobre-humana que explicaria estas mortes em Vegas? Não; é evidente que este radicalismo é uma interpretação humana e, sim, malevolente do Corão feita por uma minoria. Dito desta maneira pode até parecer óbvio, mas não é bem assim. Tanto que muitos movimentos xenófobos contra religiosos islâmicos estão surgindo ao redor do mundo, principalmente nos Estados Unidos.

Mas se não foi um ato de terrorismo, o que foi então?

O grande bode expiatório de situações como esta é a doença mental. De pronto, escarafuncharam a vida do atirador de Vegas para tentar explicar seu crime em massa pelo argumento da doença mental. Até o momento, nada encontraram. Os esquartejadores, pasmem: parece que foi culpa deles mesmo… Não há um DSM-V como mandante do crime. Ah, mas para Damião sim: parece que este sim era louco (*suspiro de alívio*).

Pois é, parece, tudo sempre parece. Conjecturas mal esquadrinhadas na internet logo acalmam a angústia do leitor ao achar uma razão para o irracional e ponderar que Damião tinha uma doença mental.

Pelos relatos que li, parece que tinha sim. Mas e daí? A doença mental foi a causadora do incêndio? Logo sopram aos sete ventos os argumentos de que quem matou as crianças foi a doença psíquica, a política de saúde mental do País. O debate facilmente se torna político, como é moda ultimamente. A falta de tratamento dos insanos, a desassistência do doente mental. O Brasil tem um péssimo serviço de saúde mental. Os pacientes, muitas vezes, ficam desassistidos e sintomáticos, isso é verdade. Mas daí a falar que isso é causa de chacinas cruéis como a da semana passada, alto lá.

Há relatos de que Damião achava que estavam envenenando-o. O mais natural seria que Damião fosse atrás de seu algoz (sua família), e não das crianças. Por que mataria as crianças? Ou seja, a doença mental dele pode não ter a ver com o crime cometido. Por que não se matou tão somente? Se estivesse medicado, a tragédia teria sido evitada? Pode ser. Mas não dá para saber ao certo. Nem dará mais para saber, pois só ele guardava a chave da motivação para tal. Se a motivação tinha raiz em algum delírio? Não dá para saber. Podemos inferir, supor. Mas não dá para bater o martelo.

Fato é que esse tipo de crime, possivelmente relacionado a um evento de saúde mental, é extremamente raro. É mais fácil vermos alguém da população geral cometer tais atrocidades do que alguém com doença mental. No entanto, se mesmo no caso de Damião a relação é obliqua, a associação direta crime-distúrbio mental é inevitável.

Para nos apaziguarmos diante do irracional, ligamos crime a doença mental. Fico pensando nos consultórios de psiquiatras com guaritas da polícia à porta para a prevenção de loucuras, se assim fosse.

Com este processo, alienamos o mal. O expurgamos de nosso entorno e o jogamos para a doença mental. É ela a culpada! Uma explicação que nos traz alento, que exorciza o mal para longe de nós, e que consequentemente afasta também a loucura, indesejada, de nós. São “eles” que fazem estas coisas. Alento para a população, e desserviço para aqueles que têm algum distúrbio mental. Estigma.

Mas e os Nardoni? E o casal do zelador? E Carandiru?

É difícil conceber isso, mas a maldade não está na doença mental, ela está entre nós.

Imagem de capa: Shutterstock/ItsMoment

TEXTO ORIGINAL DE BRASILPOST






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