A hipocrisia não recomendada

Nem sempre nos apresentamos como somos de fato. Muitas vezes, nem mesmo sabemos quem somos e vamos vivendo uma vida que nos foi dada como um script. Para a Psicanálise, somos seres divididos exatamente por sermos seres de linguagem e de cultura. Poderíamos imaginar metaforicamente que, desde a concepção, vamos guardando em nosso mundo interior tudo o que vivenciamos – registros – até que paulatinamente vamos construindo um Eu. Nosso mundo interior, entretanto, não é uno: é formado por uma porção de ideias, afetos, objetos, partes de nós mesmos e de nossas figuras parentais, sub-personalidades.

Até que o sujeito constitua um Eu – com certa autonomia e forte o bastante para lidar com esse mundo interior razoavelmente caótico e a realidade externa, muitas vezes também ela caótica – é preciso que tenha tido uma maternagem suficientemente boa (Winnicott) e barrado em seu gozo libidinal por alguém que exerça a função paterna também de modo suficientemente eficaz (Lacan). Até que o homem chegue a fazer uma divisão saudável entre o Eu e o não-eu muita coisa acontece de bom e de mau. Perturbações mais ou menos graves, em nosso desenvolvimento, produzem sintomas que um clínico percebe logo nas primeiras entrevistas.

Angústias profundas; depressão; sensações de despersonalização; falta de fronteiras na mente e no corpo; ameaças de desintegração; falta de coesão e independência; tendências autodestrutivas; pensamentos suicidas; drogadição; narcisismo exacerbado e sentimentos de despedaçamento são alguns desses sintomas que têm aumentado na prática clínica contemporânea. A vida do sujeito não tem referência em si mesmo: cria para conseguir sobreviver psiquicamente um falso self, submisso ao desejo, aos interesses e ao discurso do Outro. Ao mesmo tempo, porém, percebe-se infeliz, vazio, inexato, defensivo demais ou agressivo ao extremo, sem continuidade, sem comunicação. Sua existência é uma vida sem diálogo; sem vínculo afetivo profundo; sem élan vital.

O falso self impede o sujeito de conhecer-se e conhecer seu desejo. Impede-o de sustentar quem é e o que quer. Impede-o de viver a vida real. É um ator representando um papel para conseguir transitar no mundo familiar e social. Quase que funciona por imitação, sendo incapaz de aprender com sua própria experiência.

Age, na maior parte do tempo, debaixo do olhar do Outro, realizando o que supõe que desejam dele. Na nossa sociedade do espetáculo, vamos ver pessoas assim exibindo-se em demasia nas redes sociais porque, no fundo, sentem-se nulas e sem personalidade. A exibição exterior é somente um substituto do vazio interior.

Pessoas assim vazias irão procurar o elogio a qualquer preço; o afeto que não desfrutaram na infância; o reconhecimento que nunca houve por parte dos pais. Vão estampar qualidades que nem sempre existem e, mesmo quando existem, estão esvaziadas por uma ansiedade que os persegue quase como uma sombra. Vestirão roupas de marca. Seguirão a dieta da moda e os ditames sociais por mais que os engolfem a cada dia em situações bizarras. Tentarão mostrar-se superiores à média ou se afastarão, quase como esquizoides, do convívio social. Alguns demonstram ar encabulado. Outros, excessiva extroversão. Há os que apresentam uma falsa modéstia arranjada para arrecadar bajulação. E os que se mostram ilibados esperando com isso o aplauso.

A grande maioria nem percebe que está sendo hipócrita. Somente quando submetidos à Análise ou a uma psicoterapia profunda começam a ver quão longe de si mesmos estão e o quanto procuram promover-se em busca de holofote. Maltratados em seu narcisismo infantil, trazem consigo uma sensação contínua de desvalor que os impele a atitudes e comportamentos que comprovem não serem assim tão vazios e sem significado, para si mesmos e para os outros. No fundo, inconscientemente, estão tentando construir uma autoestima que não possuem. Mas a Análise deve levá-los mais longe do que isso: deve fazer com que reencontrem sua criança interior perdida e ferida. A partir desse reencontro, é possível a superação dos sintomas e a construção de um Eu autônomo e verdadeiro, que foi impedido de se desenvolver.

Um caso clínico para exemplificar. Lembro-me de um senhor de cerca 50 anos, que atendi há alguns anos. Ele vinha de duas análises anteriores que considerava malsucedidas. Acusava seus ex-analistas sem perceber que a acusação referia-se bem mais a si mesmo por não conseguir sair da zona de conforto criada por um falso self. Sua vida afetiva era inexistente. Conseguia, a cada final de semana, sair com uma mulher diferente e desfrutar prazer sexual. Mas, logo em seguida, fugia de qualquer possibilidade de vínculo e mergulhava novamente em sua angústia e solidão. Criava para si mesmo situações perigosas com muitas dessas mulheres, como sexo sem camisinha ou o frequentar locais onde transitavam traficantes e outros tipos de criminosos. Sem saber, buscava a morte.

A Análise o fez perceber o falso self a partir de uma palavrinha que usava quase como um mantra: aviamento(s). Costumava dizer que, para suportar o almoço dominical com os pais idosos, precisava fazer aviamentos. Ou para lidar com seu chefe na empresa onde trabalhava. E até mesmo em situações corriqueiras como ser atendido por um garçom. Aviamento era o significante que utilizava para dizer fingimento e reportava-o a cenas infantis quando colocado defronte de uma televisão inerte e fria para não dar trabalho à sua mãe, observava-a costurando. A mãe era costureira e reclamava o tempo todo que ele a atrapalhava em seu ofício. Filho único de uma mãe ausente e cruel, não conheceu o pai na primeira infância. Veio a conhecê-lo quando a mãe o reintroduziu na família, após uma tentativa de separação que durou alguns anos.

Com o tempo e sessões que utilizava para chorar e ficar em silêncio, esperando do analista apenas sua presença efetiva, e talvez afetiva, o paciente começou a mostrar um lado que ele mesmo não sabia possuir: um lado leve e bem humorado que o levou a trabalhar como voluntário em orfanatos na tentativa de distrair crianças. Quando concluiu sua Análise afirmou durante algumas sessões que tinha mudado de personalidade. Que o homem que entrara pela porta do consultório alguns anos antes não era ele. A angústia que o consumia; o sexo compulsivo e promíscuo que praticava e a sensação de que a qualquer instante poderia surtar sumiram. O paciente deixou de referir-se a tais sintomas durante alguns meses antes da conclusão do tratamento.

Pais, educadores e terapeutas, de um modo ou de outro, ensinam ou levam o sujeito à arte difícil e bela da convivência humana. Conviver, no entanto, requer saber revelar-se sem exibicionismo e sem agressão demasiados. A criança que foi suficientemente amada e que, depois, foi bem direcionada e aceita por seus professores, será um adulto que age com afeto, delicadeza, gentileza e generosidade, ainda que sempre carreguemos conosco nosso lado sombrio e obscuro. Erros, deficiências, medos e fragilidades fazem parte do quinhão humano. Mas não impedem o convívio profundo e autêntico com amigos e amores. Ao contrário. Talvez seja por termos esse lado falho, faltante, que podemos nos lançar na aventura do amor e da criatividade em todas as suas formas e graus.






Paulo Emanuel Machado é psicanalista, escritor e professor. Tem dois romances publicados: A TEMPESTADE (Editora Scortecci, 2014) e VOCÊ NÃO PODE SER O OCEANO (Edição independente, 2015), ambos baseados em relatos de pacientes e alunos. O primeiro sobre abuso sexual; o segundo sobre a travessia difícil da adolescência. Também possui artigos publicados e contos em antologias. É de Salvador, Bahia, nascido a 10 de janeiro de 1960.