Nada. Nada justifica um estupro.

Por Andréa Martinelli

“Violência contra a mulher é a violação de direitos humanos mais tolerada no mundo”.

A frase é de Phumzile Mlambo-Ngcuka.

Uma menina de 17 anos foi estuprada por 30 homens em uma comunidade do Rio de Janeiro. Foram 30 homens. Entre eles, nenhum se questionou. Ela teve seu corpo e todos os seus direitos completamente violados. Foi filmada com a vagina sangrando e homens rindo ao fundo. O vídeo foi favoritado por mais de 500 pessoas no Twitter de um dos estupradores. Ela estava desacordada. E foi violentada por 30 homens.

O passo para que o crime se transformasse em piada, brincadeira, foi dado nas redes sociais. “Eles amassaram a mina, deu pra entender?”, dizia um dos comentários. A avó da menina disse à rádio CBN que ela costuma ir para comunidades e, às vezes, passa alguns dias sem dar notícias. Revelou também que ela é usuária de drogas há cerca de quatro anos e que é mãe de um menino de 3 anos.

Pronto. As informações sobre a vida pessoal da vítima se tornaram pretexto para dar continuidade à máquina da cultura do estupro e a banalização dele. Por que, para alguns, especialmente homens, é mais fácil se esquecer do crime, focar em si mesmo e professar o questionamento cruel de que “mas será que ela não pediu?”, “mas ah, ela não usa drogas?”, “ela subiu o morro por que, então?”, “será que ela não mereceu?”.

Abalada, a jovem contou ao O Globo: “Quando acordei tinham 33 caras em cima de mim” após deixar o hospital que foi submetida a exames no Rio de Janeiro. “Só quero ir para casa”, disse. Ao jornal ela também disse que foi dormir na casa do namorado, na última sexta-feira (20), e só acordou no domingo, depois que tudo tinha acontecido. O crime segue em investigação.

Nada justifica um estupro. Nada. Muito menos a sua tentativa de culpabilizar a vítima que é, no mínimo, inquietante, triste, revoltante. São homens, relativamente saudáveis, que vivem em uma sociedade onde as relações são guiadas pelo poder e pela submissão que cometem este tipo de crime e buscam deslegitimar a vítima.

O estupro é a maneira mais cruel de um homem mostrar para uma mulher “quem é que está no comando”. Estupro não é sexo, não é troca, não é carinho. Estupro é uma demonstração clara de poder sobre o outro. É violência, é constrangimento, é violação, é tortura, é desrespeito, é crueldade, é atrocidade, é crime que se manifesta das formas mais diversas.

Mais do que aceito, o estupro é ensinado. Basta observar quando uma mãe pede para a filha “sentar como mocinha” ao usar um vestido. Desde pequenas somos ensinadas a nos proteger. Pressupõe-se que, por sermos do sexo feminino, vamos ser atacadas, violentadas em algum momento das nossas vidas (estima-se que uma em cada cinco mulheres será vítima de abuso sexual durante suas vidas). Enquanto, com um menino, o culto ao “falo” e às pernas abertas, livres, prontas para comandar, é a lei.

Dentro deste ciclo desequilibrado, formam-se adultos. A relação de poder está na fala de um entrevistado que diz: “ah, eu era alcoólatra, então, quando chegava em casa estuprava a minha mulher porque era o que tinha. Eu ficava louco por sexo”; e quando você abre a porta de casa para o seu vizinho, que diz em determinado momento: “você sabe que o que você tem aí é para ser usado, não é?”, se referindo ao seu órgão sexual feminino.

Homens que estupram não estão longe. Homens que acham que mulheres existem apenas em função deles não estão longe. Mulheres são violentadas a cada onze minutos no Brasil. E não esqueçamos que até o ano de 2009, o estupro era considerado crime contra a honra. E ainda hoje, 2016, o estupro é um dos crimes menos notificados e mais silenciados do Brasil.

Cerca de 50 mil casos de estupro são registrados anualmente no Brasil e estima-se que isso representa apenas 10% da quantidade dos casos. A mulher violentada, na maioria das vezes, deixa de denunciar com medo de retaliações, com vergonha de se expor, e medo de ser julgada pela violência que outro cometeu contra ela. É um silêncio que ecoa.

Repetimos, incansavelmente, que mulheres são tratadas como objetos, para que casos como o de hoje não aconteçam. E para que entendam, de vez, que as mulheres querem autonomia sobre os próprios corpos porque (pasmem!), temos esse direito. Temos o direito de dizer não. O direito de denunciar. O direito de não querer ser transformada em um objeto pronto para ser usado e jogado fora. O direito de andar da rua. De ser respeitada. De apontar o dedo. De falar.

Dar lugar ao poder é algo confortável, egóico. Tomamos o estuprador como o “cara normal”. Até porque ele é, mesmo. A maioria esmagadora está ali, ao lado da vítima. É um pai, um namorado, um avô, um irmão, um marido, um vizinho, um tio. A sociedade naturaliza e perdoa este criminoso, na mesma proporção que culpa a vítima.

É preciso quebrar esse ciclo vicioso de poder que habita a mente das pessoas. É uma questão cultural. Está enraizado. É opressor. É aprisionante. O que há de libertador em invadir o corpo do outro junto com outras 30 pessoas, e ainda divulgar isso publicamente? O que há de amoroso na dominação, na violência contra o outro? Em cessar direitos, em demonstrar poder? Como algo positivo e prazeroso pode nascer disso tudo?

Alguns homens podem se solidarizar com o caso e até se revoltarem com outros homens. Mas isso de nada adianta se este mesmo homem passa a mão na cabeça de um amigo que fez algum comentário objetificador, ou se ele não reconhece o machismo em si mesmo. Veja, 30 homens. Nenhum se questionou. Nenhum deixou de participar do crime.

Existimos em uma sociedade que subjuga, viola, desrespeita e esmaga a cada oportunidade os direitos conquistados pelas mulheres. Mais claro que isso, para mim, é o sentimento de que só podemos confiar umas nas outras: só outra mulher é capaz de entender o que isso significa.

Não há como esperar que algo seja feito de braços cruzados. Muito menos esperar algo de governantes que escolhem receber Alexandre Frota para falar de educação; que acabam com Ministério dos Direitos Humanos, da Igualdade Racial e das Mulheres e criam uma “secretaria”, comandada por uma mulher “defensora da família e da vida desde a concepção” no lugar; que faz com que a PL/5096, que retira direitos já conquistados pelas mulheres, caminhe para ser votada e aprovada.

A frase de Phumzile Mlambo-Ngcuka, sub-Secretária Geral da ONU e Diretora Executiva da ONU Mulheres, faz-se cada vez mais clara. A violência contra a mulher é, ainda, a violação de direitos mais tolerada no mundo.

Um caso como este é sobre todas nós. Faz lembrar quem somos e o caminho longo que temos. Não vamos nos calar. Vamos falar até por aquelas que não podem falar por si mesmas. Vamos renascer em cada gesto, em cada lágrima.

Somos mais bonitas quando ficamos juntas. E quando ficamos com raiva.

TEXTO ORIGINAL DE BRASIL POST






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