O que vamos deixar para nossos filhos

Por Luiz Ruffato

F. tem vinte anos. Na sexta-feira, saiu às nove horas da noite para encontrar alguns amigos em um barzinho. Após acomodarem-se em torno de uma mesa, iniciaram aquelas conversas animadas e exaltadas que mantemos quando guardamos ainda ilusões e sonhos e a vida nos parece o oceano visto da praia, que, embora nos cause temor, ansiamos por desbravá-lo. Em um determinado momento, F. deu falta de sua bolsa e seu universo desequilibrou-se.

Roubaram o telefone celular, documentos, cartões de crédito e de débito – mas principalmente turvaram-lhe a vívida confiança em seus semelhantes. Quando chegou em casa, os familiares respiraram aliviados, constatando que F. tivera “sorte”, porque fora “apenas” roubada… já que ela poderia ter sido agredida, violentada, morta…

O Conselho Cidadão para a Segurança Pública e Justiça Penal, uma organização não-governamental mexicana, divulgou no final de janeiro uma lista que demonstra a areia movediça em que estamos afundando: o Brasil possui 21 das 50 cidades mais violentas do mundo. São dados estatísticos, portanto indiscutíveis, que aferem o número de homicídios por 100 mil habitantes em municípios com população acima de 300 mil habitantes.

Em termos absolutos, o Brasil ocupa o primeiro lugar no ranking, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS): de cada 100 assassinatos ocorridos no mundo, 13 acontecem no Brasil. Em 2014, 56 mil pessoas perderam a vida – 29 casos por 100 mil habitantes, mais de quatro vezes a média mundial, de 6,9 mortes.

Fortaleza (CE), segundo dados da ONG mexicana, surge como o lugar mais perigoso do Brasil. Das 21 cidades representantes do Brasil, 12 localizam-se no Nordeste (além de Fortaleza, Natal, Salvador, João Pessoa, Maceió, São Luís, Feira de Santana, Teresina, Vitória da Conquista, Recife, Aracaju e Campina Grande), três no Norte (Manaus, Belém e Macapá), duas no Centro-Oeste (Cuiabá e Goiânia), duas no Sudeste (Vitória e Campos dos Goytacazes) e duas no Sul (Porto Alegre e Curitiba). Como se vê, nem Rio de Janeiro nem São Paulo, que ocupam espaço privilegiado no imaginário nacional, em termos de ameaça ao indivíduo, comparecem no ranking.

Mas, infelizmente, a violência não se limita às grandes cidades. A selvageria se espalha como uma metástase cancerígena, atingindo até os mais distantes rincões do país. Em 2014, o município de Caracaraí (RR), de 19 mil habitantes, teve o triste privilégio de ser eleito o mais violento do Brasil – lá foram constatados 40 homicídios naquele ano, o que equivale a um índice de 210 assassinatos por 100 mil habitantes, sete vezes mais alto que a já altíssima média brasileira. Antes de Fortaleza, primeira no mapa da violência das cidades com mais de 300 mil habitantes, aparecem pelo menos 150 municípios pequenos e médios espalhados por todas as regiões do país.

Nós, brasileiros, temos cada vez mais mostrado nosso descompromisso com a coletividade. Ao invés de tentar solucionar conjuntamente os graves problemas que vão surgindo – e que já são inúmeros – preferimos tomar atitudes individualistas que salvem o pequeno núcleo a que pertencemos. Se a violência nos ameaça, construímos prédios. Se os prédios não são seguros, colocamos seguranças. Se eles não dão conta, estendemos cercas elétricas. Se nem isso resolve, mudamo-nos para condomínios fechados, isolamo-nos do mundo, e fingimos que estamos protegidos.

O Institut of Economics and Peace avalia que a violência no Brasil custa por ano cerca de 765 bilhões de reais em despesas com o sistema de saúde, aparato de segurança pública e a máquina do Judiciário, o que equivale a 8% do PIB nacional. Mas, para além de razões econômicas, o maior custo da violência é sem dúvida, por um lado, a perda de qualidade de vida, e por outro a amargura que nos intoxica. Eu sinto vergonha e frustração por legar a meus filhos um país deteriorado socialmente – um lugar onde o maior objetivo é tentar chegar vivo em casa ao fim de um dia de trabalho.

Como não fazemos nada, como cruzamos os braços num misto de fatalismo e indiferença, termino por lembrar o terrível libelo inconformista do pastor alemão Martin Niemöller (1892-1984), que em um sermão proferido em Berlim, em 1933, alertava: “Um dia vieram e levaram meu vizinho que era judeu. Como não sou judeu, não me incomodei. No dia seguinte, vieram e levaram meu outro vizinho que era comunista. Como não sou comunista, não me incomodei. No terceiro dia vieram e levaram meu vizinho católico. Como não sou católico, não me incomodei. No quarto dia, vieram e me levaram: já não havia ninguém para reclamar”.

Imagem de capa: Shutterstock/KonstantinChristian

TEXTO ORIGINAL DE EL PAIS






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