Quando nem tudo era cancerígeno

Por Sílvia Marques

Andando pelas ruas da cidade , acessando os sites da internet ou pegando de relance uma fala de programa de variedades na TV, os assuntos são basicamente os mesmos , além das tradicionais amenidades e escândalos políticos: pão sem glúten, café sem cafeína, cerveja sem álcool, cigarro eletrônico, beijo sem romance , sexo sem amor, bate papo sem contato visual.

Sinto saudade do tempo em que a gente comia fritura sem culpa e o pessoal podia fumar o seu cigarro sem se sentir um criminoso. Ok.Ok.Ok. Aquele lance de poder fumar em restaurante era muito chato. Muito chato mesmo. Era muito ruim comer com fumaça de cigarro. Por outro lado, hoje em dia nem mesmo na rua os fumantes ficam em paz. Sempre tem alguém fazendo cara feia , fingindo tosse, criando todo um auê porque o outro optou por um estilo de vida não saudável. Sim, ninguém vai adquirir um câncer por passar 5 segundos perto de um fumante ao caminhar numa calçada.

Mas as pessoas se esquecem que a vida é cancerígena. Sim, a vida é cancerígena com seus desencontros , decepções e auto enganos. Com ou sem fumo, com ou sem gordura trans, com ou sem glúten, todos iremos para o mesmo lugar: para o cemitério. A bonitinha fitness vai ter as carnes apodrecidas como a gordinha que come a sua coxinha feliz da vida. Ok.Ok.Ok mais uma vez. Não defendo que a gente deva entupir as veias com gordura , jogando o colesterol na lua. Não defendo o hábito de fumar nem de encher a cara. Também não tenho nada contra uma boa salada e uma caminhada pela manhã.

O drama está no radicalismo, na intolerância , na crença ingênua de que seremos salvos pelo alface , pela academia , pelo pão sem glúten. Se uma vida saudável evita doenças graves e pode garantir mais alguns anos de existência, por outro lado, uma vida saudável apenas no sentido físico, pode ser chata , mas muito chata mesmo para algumas pessoas…ou para muitas….ou para a maioria. O problema é que quase todo mundo têm medo de admitir que a gente era mais feliz quando podia comer o nosso pão com manteiga em paz, o nosso cafezinho com açúcar.

O problema é que o conhecimento que deveria nos libertar, está nos transformando em paranoicos. Pior do que isso: em gente chata , sem prazer. Sim, não há nada mais broxante do que gente chata.

Sim, sinto saudade do tempo em que a gente não falava de câncer e colesterol e triglicérides o tempo todo. Sinto saudade do tempo em que comida era comida e não medicamento ou veneno. Sinto saudade da ignorância feliz, quando a gente não sabia que tudo era cancerígeno. Que tudo entope as veias , que tudo cria algum tipo de desgraça para o nosso organismo.

Sinto saudade do tempo em que a gente sonhava em se apaixonar para valer , ficar que nem bobo, de quatro, idealizando um beijo, pensando na pessoa amada antes de dormir para poder sonhar com ela.

Sinto saudade do tempo em que namorar por amor não era considerado cafona e os pais de família não eram vistos como alcoólatras por tomarem uma cervejinha juntamente com o feijão gordo.

Sinto saudade do cheiro de comida caseira , do bolo assando. Dos diários cheios de confidências de amor louco. Da molecada se reunindo no shopping para ver um filme e depois comer um sanduba. Do tempo em que ver a selfie da vizinha não era o melhor passatempo. Em que as pessoas se reuniam para ver ao Super Cine ou ao último capítulo de uma novela famosa. Acho triste reduzir os filmes e a vida à pequena tela do smartphone…

TEXTO ORIGINAL DE OBVIOUS
Imagem de capa: Shutterstock/Polina Shestakova





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