A quebra de paradigmas como exercício da liberdade

Já ouviu falar em paradigma? Nesse texto, vou usá-lo com o mesmo sentido de visão de mundo: as “lentes” que escolhemos para enxergar e moldar a realidade. Em resumo, trata-se de uma abstração, ou melhor, um exercício de liberdade tão poderoso quanto sutil. Se você já passou por uma quebra de paradigma sabe do impacto que isso tem no que chamamos de “certeza”, não a do 2+2=4, mas aquela que se desfaz quando um discurso, um parágrafo ou um punhado de palavras transformam seu mundo inteiro num piscar de olhos. Dito isso, posso garantir que minha intenção não é mudar sua visão de mundo, fique tranquilo. Quero apenas te lembrar do quanto é difícil enxergar as entrelinhas da vida, seja você intelectual ou analfabeto funcional.
Tudo começou quando me dei conta da fragilidade do que antes considerava inquestionável e ousei ir além do meu modo automático de pensar. Desde então, passei a apreciar o caráter mutável da minha realidade individual. Já dizia Descartes: “Penso, logo existo”. E a única existência que conheço sempre confirmou minha crença de que sou a pessoa mais importante do mundo, o centro do Universo. Ora, isso não deveria ser nenhuma surpresa, certo?

Toda e qualquer experiência, desde a minha primeira lembrança, sempre teve uma única referência: Eu — sempre remete a algo que vi, participei, aconteceu comigo ou com os outros ao meu redor. Nem os pensamentos e sentimentos de outras pessoas fogem à regra, pois têm que chegar até mim, o receptor absoluto, seja qual for o meio de comunicação utilizado. Do contrário, não são reais. Afinal, só tenho contato imediato com meus próprios pensamentos e sentimentos. Todos nós temos essa sensação, é inerente ao que chamamos de consciência, algo tão evidente que nem nos damos ao trabalho de falar sobre o assunto.
Em suma, esse texto é um estímulo à reflexão sobre a sua experiência de vida cotidiana, e parte da ideia de que nossas subjetividades têm a mesma origem e convergem em alguns pontos — quem já se identificou profundamente com as ideias ou sentimentos de alguém, sabe do que estou falando. E se você está lendo isto aqui, seja quem for, saiba que temos algo em comum. Portanto, te convido a pensarmos sobre a importância de quebrar paradigmas e o tamanho esforço que isso demanda. Não é fácil enxergar as coisas sob outra perspectiva, aceitar novas ideias e ir além da inércia que nos consome diariamente em forma de rotina. Não é fácil ir além do “piloto automático” que nos direciona a uma visão de mundo egocêntrica. Não é fácil ir além desse referencial único e absoluto chamado “Eu”. Não é nada fácil.

Veja o João, por exemplo, um cidadão comum que se viu pressionado a adotar um determinado estilo de vida assim que recebeu seu diploma universitário — como muitos de nós. Ele acorda cedo todos os dias e trabalha mais de 10 horas para manter seu emprego. No fim do expediente, já estressado e cansado, ele só pensa em chegar em casa, comer, relaxar e dormir um pouco mais pra compensar o sono acumulado ao longo da semana. Ele sabe que precisa levantar bem disposto para enfrentar as mesmas coisas no dia seguinte. Apesar de ser um cara legal, João se vê constantemente irritado pelo excesso de pessoas, pelo trânsito, pela lerdeza dos idosos, pela falta de respeito de tanta gente egoísta, pela hiperatividade das crianças, pelo tamanho das filas e pela falsidade dos relacionamentos no trabalho. Enfim, ele odeia tudo e todos que insistem em atrapalhar seus desejos, planos e expectativas.
Para se livrar da inércia, cada uma dessas pequenas situações que compõem uma rotina infernal requer certa dose de esforço. Se João não escolher conscientemente uma outra maneira de interpretar esses eventos, pode apostar, voltará a se sentir irritado e infeliz. Sei disso porque comigo funciona da mesma forma. Quando o centro do Universo sou Eu, é natural que só pense em mim e tenha a nítida impressão de que o mundo gira em torno das minhas necessidades, meus horários, minhas opiniões, meus valores e meu cansaço.

É natural que encare outras pessoas como obstáculos, meros figurantes no espetáculo da minha própria existência. Por outro lado, se assumo uma versão “socialmente correta” do paradigma anterior, talvez deixe de focar nas pessoas e comece a julgar suas ideologias e crenças. Afinal, são todos preguiçosos, corruptos, individualistas, alienados e burros. Tenho certeza que continuarão passivos como gado, indiferentes aos problemas que só Eu pareço enxergar. Me vejo pensando: “Meu Deus, como podem ser tão cegos?”
Se você acha mais fácil viver no piloto automático, tudo bem — é o que a maioria faz. Contudo, é preciso reconhecer que optar pelo caminho mais fácil, aceitar tudo sem questionar e agir sem pensar são apenas reflexos da inércia disfarçados de “escolhas”. Quanto mais eu sigo a “receita” para o sucesso, maior será minha expectativa de que o mundo cumpra suas promessas e me recompense. Assim, consumido pelos meus próprios problemas, deixo de enxergar todo o resto. E quando estou a ponto de desistir dos outros, porque é mais fácil começar do zero já que nada vai mudar, percebo que é possível pensar diferente.

Então, faço um esforço para me lembrar da humanidade e dos desafios de cada pessoa que julguei e condenei. Mas não pense que estou aqui pra te dar lição de moral ou te mostrar como viver a vida. Ninguém espera que você mude totalmente de uma hora pra outra, porque é difícil, eu sei. Requer muita vontade, principalmente naqueles dias em que tudo dá errado. E se você é como eu, tem dias que simplesmente não vai nem querer tentar.
Felizmente, na maioria das vezes que você estiver consciente o suficiente para escolher, será capaz de enxergar a senhora “lerda” como uma avó carinhosa, lutando para conviver com a dor de um corpo frágil que já não se movimenta mais como antes; enxergar o “babaca” que furou a fila como um pai preocupado, apressado para não perder o trabalho de merda porque sua família depende disso; enxergar o “pirralho” insuportável como uma criança carente, curiosa e condicionada a fazer birra para receber atenção e cuidado dos pais.

Claro, é bem provável que nada disso seja verdade, mas tudo depende da forma como você escolhe enxergar. A tendência é aceitar a primeira versão que vem à cabeça, pois aprendemos a julgar desde cedo, mas corre-se o risco de acabar como o João: solitário, infeliz e cercado de “idiotas”. Portanto, que tal dar uma pausa e tentar conceber outras alternativas? A verdade é que você é capaz de escolher o que quer enxergar ou, segundo um dos princípios da Comunicação Não-Violenta, observar sem julgar.

Outra verdade é que você pode dar o significado que quiser às coisas, e aqui poderia citar vários autores existencialistas, mas fico com Joseph Campbell: “A vida não tem sentido por si só, nós é que atribuímos significado. O sentido da vida é o que você quiser que seja.”
Isso me faz lembrar de algo com inúmeros significados: “Deus”. Não por acaso, essa palavrinha mágica demonstra perfeitamente o nosso poder de escolha (livre arbítrio), pois sempre se adapta ao significado que quisermos: Jesus, Alá, Oxalá, Buda, Universo, Mãe Natureza, Destino, etc. Ironicamente, nem os ateus escapam de “Deus”, visto que a única diferença é o “formato” escolhido: dinheiro, beleza, conhecimento, poder — a lista é enorme. E o que antes chamei de “piloto automático” ou “inércia” agora pode ser traduzido como “ter fé” (cultivar verdades inquestionáveis) e “viver para adorar Deus” (ser consumido por um único aspecto da vida).

Muitos nem percebem o quanto essa combinação entre piloto automático e adoração pode ser perigosa. Se você adora o dinheiro, nunca terá o bastante. Se você adora a beleza, nunca estará satisfeito com a própria aparência, mesmo fazendo de tudo para se manter jovem. Se você adora parecer inteligente, continuará se sentindo ignorante e inseguro, alguém que não sabe nada sem a ajuda da internet. Se você adora o poder, nunca deixará de ter medo, e nenhum poder será o bastante para garantir a sua autoridade.

E não adianta negar, sabemos que tudo isso é verdade. O segredo é não deixar que esse tipo de comportamento, automático e obsessivo, se esconda nas entrelinhas da vida e se torne inconsciente. Esse é o tipo de coisa que nos engole pouco a pouco e permite que um determinado paradigma crie raízes. Assim, o mundo atual se aproveita dessa inércia como combustível para sobreviver. Medo, desdém, frustração e obsessão alimentam o culto ao Eu e criam demanda para as ilusões que nos vendem como liberdade.
Quer saber de outros tipos de liberdade? Há uma em especial que desperta a atenção de poucos, tamanha influência de uma cultura que nos enfia sucesso, vitória e ostentação goela abaixo. Uma liberdade que requer atenção, consciência, disciplina, esforço e, acima de tudo, capacidade de amar e se sacrificar pelo próximo — em pequenos gestos, da forma mais discreta e humilde possível. Isso é o que considero libertador, pois todo o resto te condena a uma prisão chamada “Eu”, construída pela inconsciência de possibilidades, pensamentos automáticos e comportamentos guiados pela inércia.
Veja bem, nada do que falei é glorioso, prazeroso ou tentador, nem deve ser interpretado como sermão ou julgamento. Não se trata de moral, religião, ideologia ou busca pela verdade, mas de um constante esforço em se manter consciente, reconhecer o que é essencial e assumir as próprias escolhas. Em suma, a quebra de paradigmas pode ser um fenômeno inicialmente doloroso, mas igualmente libertador.






Ao longo de uma história que me levou da Engenharia à Psicologia, aprendi que não basta entender a natureza humana, é preciso experimentá-la. Profissão: Engenheiro Químico (UFSCar-SP) e graduando em Psicologia (FMU-SP)