Religião, espiritualidade e psicanálise.

A problemática religiosa não foi deixada à margem pela Psicanálise. Ao contrário, três grandes nomes da história psicanalítica trataram dela, a partir de suas origens familiares. Sigmund Freud era de origem judaica. Carl Gustav Jung era filho de um pastor protestante. Jacques Lacan pertencia a uma família extremamente católica, a ponto de um de seus irmãos, talvez o seu preferido, ser monge beneditino. Todos três, aferrados à ciência de seu tempo e desejando abordar a questão por este viés, foram críticos da religião institucionalizada. Demonstraram que não existe a religião, como verdade infalível e impecável. Existem religiões, cada uma delas sendo fruto de uma cultura determinada, pagando o dízimo de pertencer a uma história e a uma geografia.

Não se pode negar, porém, que algo de profundamente religioso existe no psiquismo humano. A busca por espiritualidade – no sentido de conexão com seu eu profundo e com o cosmos – sempre foi algo apreensível nos pensadores, artistas, filósofos e no homem em geral. A pós-modernidade, que tem raízes no subjetivismo e no relativismo, levou a sociedade a um desligamento de verdades e valores absolutos. Ao mesmo tempo, aumentou a sede, pelo menos do homem comum, por aderir a ritos e expressões de religiosidade. Embora o discurso teológico incomode o homem contemporâneo, especialmente se vier traduzido por dogmatismos e leis extremistas, a espiritualidade aparece cada vez mais no supermercado da cultura.

O tema da religião está praticamente presente em toda a obra de Freud, especialmente nos dois grandes clássicos: Totem e tabu e Moisés e o monoteísmo. Freud vê a religião como uma ilusão neurótica. Um mero mecanismo de defesa do ego. Interessava-se, no entanto, pela história das religiões e por fenômenos ditos sobrenaturais como a possessão diabólica, o ocultismo e a telepatia. Em seus ditos espirituosos, chegou a afirmar que se a Igreja não tivesse abandonado a prática da cura de almas na confissão auricular, a Psicanálise não teria tido o sucesso que galgou.  Indicou, inclusive, que, na formação do futuro analista, temas como a mitologia, a história das religiões, a psicologia da religião e afins fossem estudados. Todos que praticamos a Psicanálise sabemos que muito do material recebido dos pacientes vem encharcado de crenças religiosas.

A partir do discurso freudiano podemos ser tentados a opor Psicanálise e religião. Ou a acreditar que o ateísmo é a única forma de verdade plausível para um analista ou um analisando que conclua sua análise, uma vez que, em grande parte, é certo que crenças religiosas obsessivas são apenas ilusões. Na história da psicanálise, porém, vamos encontrar grandes nomes, como o da psicanalista francesa Françoise Dolto ou do psicanalista inglês Winnicott, que defendiam e mesmo praticavam, em sua vida pessoal, a fé cristã.

Atualmente, encontramos monges budistas, pastores evangélicos e sacerdotes católicos com formação e até mesmo prática clínica em Psicanálise. Isso porque a Psicanálise defende o direito subjetivo do desejo do indivíduo. Sua própria verdade. Nenhum analista pode ou deve interferir nas crenças e práticas do indivíduo que o procura. O papel do psicanalista nunca foi normatizar nada, mas escutar e interpretar o inconsciente do sujeito. Levá-lo a responder com sinceridade profunda a pergunta: O que realmente desejas? Responder a esta pergunta e procurar, em sua realidade, satisfazer seu desejo profundo não seria uma expressão de espiritualidade? Fica a pergunta.

Se a religião atrapalha o sujeito em responder a esta pergunta ou ergue-se como resistência na elaboração e realização do desejo, ela deve ser questionada pelo analista. Se, ao contrário, o discurso religioso coincide com o psicanalítico e ajuda o sujeito a realizar-se, desenvolver-se e ser criativo e feliz, isso deve ser aceito e reforçado pelo analista. Como afirma o psicanalista Philippe Julien, estudioso do tema, a relação entre Psicanálise e religião não é unívoca. Deve ser discernida. Tratada com a sabedoria que provém do inconsciente. As respostas dadas por Freud, Jung e Lacan, ou outros depois deles, podem ser levadas em conta na escuta e prática psicanalíticas, mas nunca dogmatizadas.

Se, para Freud, a religião era uma ilusão, ao ponto de ele afirmar que a neurose obsessiva particularmente era uma forma pessoal de neurose religiosa, para Jung nós devemos reconhecer o lugar do Sagrado em nossa alma: uma existência ou efeito dinâmico da experiência religiosa primordial, presente no homem desde a pré-história. O sujeito deve conectar-se com o Sagrado em si para ser saudável. No entanto, como em Freud, Jung criticará a religião institucional, porque impõe aquilo que o sujeito deve crer (dogmas) recalcando a essência religiosa comum a toda a humanidade. Jung enfatiza que, na cura procurada pela psicologia analítica, podemos reencontrar os arquétipos que, em nós, atuam como forças divinas ou demoníacas. Devemos integrar essas forças e tornarmo-nos mais enraizados no Sagrado em nós, abrindo-nos para o mistério inconsciente. Assim, o processo de individuação será seguro.

Lacan, partindo dos pressupostos filosóficos de seu tempo, afirmará inicialmente que a religião consiste em evitar o vazio. Não satisfeito com essa fórmula, acrescentará que respeitar o vazio talvez seja mais correto. Para ele, a regra de ouro – amar o próximo como a si mesmo – é tornar-se próximo desse vazio, desse cerne em nós, dessa alteridade estranha que nos divide: nosso inconsciente. Aproximar-se desse inconsciente seria o amor ao próximo como a si mesmo. Assim, assumir e amar o próprio inconsciente, reconhecendo nossas capacidades de bem ou de mal que recalcamos, é salutar e formador de laços sociais autênticos. No famoso discurso de Roma (1974), Lacan dirá que a religião sempre dá sentido às experiências mais curiosas, mesmo para aquelas que angustiam até os cientistas. Mas dirá também que a Psicanálise não está desse lado. Para Lacan, a experiência espiritual consiste em reconhecer o fora do sentido, encontrar o impossível como dimensão do real. Assim, a linguagem dos místicos dá lugar ao fora de sentido, ao sem por que, ao sem razão.

Estudando esses três grandes teóricos, podemos apreender que não se aferram e não defendem a religião institucionalizada. Antes, criticam-na e apontam seus erros. Mas, se nos posicionamos ao lado do que hoje chamamos de espiritualidade, veremos que, de um modo ou de outro, mesmo em seu ateísmo claro, nos casos de Freud e Lacan, há um direcionamento e apaziguamento para experiências ditas (auto) transcendentes. Ensinamentos como os de Buda ou Jesus sobre responsabilidade pessoal, tolerância, ética, respeito à alteridade ou coragem moral em nada destoam do que afirma a Psicanálise.






Paulo Emanuel Machado é psicanalista, escritor e professor. Tem dois romances publicados: A TEMPESTADE (Editora Scortecci, 2014) e VOCÊ NÃO PODE SER O OCEANO (Edição independente, 2015), ambos baseados em relatos de pacientes e alunos. O primeiro sobre abuso sexual; o segundo sobre a travessia difícil da adolescência. Também possui artigos publicados e contos em antologias. É de Salvador, Bahia, nascido a 10 de janeiro de 1960.