A Ilíada conta que, após ser requisitado por seus companheiros a voltar a participar da batalha, Aquiles recolheu-se em sua última solidão, refletindo sobre as escolhas possíveis.

Por um lado, sabia que poderia se recusar a lutar novamente, e com os abundantes despojos já acumulados nos seus anos de guerra, retornaria ao seu reino. Lá, o aguardaria uma vida longa e com muitos filhos, além de anos de narrativas sobre seus feitos, discursadas por seus súditos.

Por outro lado, sabia também que voltar a guerrear ao lado dos gregos era o que de mais próprio seu destino lhe propunha; sua coragem (core: núcleo, o mais íntimo), sua potência transformando-se em ato. A morte prematura não o assustava: ao apropriar-se de sua vida, faria dela BIOS, que é a vida para além do seu substrato natural, isto é, a vida na sua propriedade de produzir e habitar um sentido, opondo-se, portanto, ao ZOE (a vida apenas como fenômeno biológico). Assim, seu BIOS transcenderia o espaço e o tempo mundanos (condição mortal) e alcançaria a totalidade (eternidade), a partir de um ato de coragem última e definitiva de ser o que ele é.

É fácil reconhecer aqui o mesmo momento eternizado por Kazantzakis na Última Tentação de Cristo. Em sua solidão na cruz, Jesus vive um trecho do que seria sua vida caso sua decisão não fosse a de encarnar o Cristo, cedendo ao chamado de Deus.

Nietzsche dizia que o pior que pode acontecer a um homem é ser separado de sua potência. De dentro de nosso destino ela nos olha, nossa decisão mais autêntica, nossa coragem, o ato no qual nos tornamos nós mesmos.

Torna-te quem tu és. (Nietzsche)

________________

Sugestões de temas, dúvidas sobre algum conceito de nossos artigos? Participe da nossa nova coluna “Pergunte ao Psiquiatra”! Envie um e-mail para: mauricio.psicologiasdobrasil@gmail.com, que nosso colunista Dr. Maurício Silveira Garrote terá o prazer de respondê-lo!


Maurício Silveira Garrote

Médico especialista em Psiquiatria Clínica pelo HC FMUSP (1985) e Mestre em psicologia clínica pela PUC-SP, com a tese "De Pompéia aos Sertões de Rosa: um percurso ao longo da Clínica Psicanalítica de pacientes com diagnóstico de Esquizofrenia" (1999).

Share
Published by
Maurício Silveira Garrote

Recent Posts

‘Uma pedra de gelo tem mais sentimento’, diz avó sobre neta envolvida na morte dos pais e do irmão

A avó materna de Anaflávia Gonçalves, responsável pela morte de seus próprios pais e irmão…

7 horas ago

Caso Tio Paulo: Justiça concede liberdade a mulher que foi presa após levar idoso morto ao banco

Erika de Souza Vieira Nunes, acusada de conduzir o corpo de seu tio falecido a…

8 horas ago

Série policial que estreou no top 10 da Netflix em 56 países é inspirada em assombroso caso real

A arte imita a vida: Esta série policial de apenas 6 episódios que foi descrita…

2 dias ago

Influencer passou 6 horas em mesa de cirurgia após parte de equipamento de exame de rotina ‘cair no seu coração’

Joey Swoll se diz desgastado física e psicologicamente após a experiência. "Ainda sinto como se…

2 dias ago

Após cirurgia, ‘Homem Dobrado’ finalmente consegue ficar ereto e ter ‘vida normal’

"Estou imensamente grato por poder finalmente dormir deitado", disse o homem.

2 dias ago

Mulher é presa após usar diploma de psicologia falso para atender crianças com autismo

Segundo a Polícia, a mulher pagou R$ 5 mil em um diploma falso de psicologia,…

2 dias ago