Outro dia, uma aluna do curso de Psicologia me perguntou se eu tinha dias em que eu sentia que não queria determinado paciente. “Você às vezes torce para o paciente faltar à sessão?” Percebi a angústia no olhar da aluna, angústia própria de quem está começando a atender na escola clínica da sua faculdade e que morre de medo de “não ir com a cara” do paciente.

Pensei muito sobre o assunto e respondi a aflita aluna que eu tinha que ser sincera com ela: claro que haveria dias em eu torceria para isto acontecer. Mas eu precisava prestar atenção a estes dias, e o que estava por trás da minha resistência.

Todos nós sabemos que o psicólogo é um ser humano e, como tal, tem seus altos e baixos. Também tenho dias em que quero ficar na cama. Dias de que me sinto inspirada e dias que não quero falar com ninguém. A questão, falei para a aluna, é perceber se o problema está em mim ou no que o paciente produz em mim. A psicologia tem um termo para isto. Se chama contratransferência. E para entender a contratransferência, é preciso primeiro entender o que é transferência.

Logo que você começa a atender, você aprende sobre a transferência. Transferência é tudo aquilo que o paciente irá sentir pelo psicólogo. Ele literalmente transfere para o psicólogo sentimentos que geralmente não tem nada a ver com o pobre coitado. A transferência é o deslocamento do sentido atribuído a pessoas do passado para pessoas do nosso presente. Esta transferência é executada pelo nosso inconsciente. Em uma terapia esse fenômeno é fundamental para o processo de cura, e o psicólogo precisa bancar esta transferência para ajudar o paciente a entender o que está acontecendo.

Do outro lado da moeda, existe a contratransferência. Entende-se por contratransferência as emoções que o terapeuta experimenta no decorrer de uma análise em relação ao paciente, e que são relacionadas com circunstâncias sentidas na sua própria vida, que o afetaram consciente e inconscientemente. Tal como os pacientes têm transferência, os terapeutas e analistas têm contratransferência. Um não vive sem o outro. A diferença aqui é que o paciente não tem que bancar os sentimentos do psicólogo.

E aí que está o “x” da questão e a que todo psicólogo tem que estar atento. A minha resistência é porque estou tendo um dia mal e não quero ver ninguém, ou porque aquele paciente específico está gerando sentimentos em mim de repulsa e naquele momento não o quero ver?

Caso a resposta seja sim para a primeira pergunta, aconselho a tirar um dia de folga e resolver o que te aflige. Dormir um pouco mais. Fazer algo que goste e então voltar no dia seguinte inteiro para o paciente. Afinal, ele não tem nada a ver com os seus problemas. Pode um médico doente atender alguém? O psicólogo também não. Não comprometa o processo do seu paciente por questões pessoais suas. Esteja em consultório 100%. Me lembro que uma supervisora me disse logo quando eu comecei a atender: “aprenda a separar os seus problemas. Deixe todos eles na porta e vá atender seus pacientes. Quando acabar o seu dia, pegue-os de volta e vá resolvê-los.” Nunca me esqueci disto e desde então é o que eu faço.

Agora, caso a resposta seja positiva para a segunda pergunta, não tenho outro conselho além de: trate isto em terapia. Seja qual for a questão que seu paciente traga e isto de alguma forma te incomoda, tem a ver com você, e não com ele. Então se trate. Procure entender o que está mexendo em e com você. Se for insuportável e você não der conta de lidar, encaminhe seu paciente para outro profissional, com todo o respeito e ética que deve ser tomado. Não prejudique seu paciente por questões pessoais suas. E não se fira nem se culpe por não conseguir lidar com esta questão no momento.

Lembra? Você psicólogo, também é um ser humano. Alguém com um passado, feridas, dores e traumas. Alguém que também está em processo e em terapia (assim espero). O fato é que vira e mexe algo vai esbarrar em alguma coisa que te incomoda. Algumas vezes será tranquilo lidar em terapia e o processo com o paciente pode continuar normalmente. Mas algumas vezes, será muito angustiante. E quando isto acontecer, tenha a sabedoria, a humildade e a ética de perceber que você também precisa de cuidados. Assim, todo mundo sai ganhando, paciente e psicólogo.

Debora Mendes de Oliveira

CRP: 06/123470. Psicóloga clínica (UNIP 2014), com ênfase psicanalítica, com experiência em atendimento voltado para abuso sexual, transtornos psiquiátricos tais como depressão e ansiedade, compulsão por internet e compulsão alimentar. Nas horas vagas é escritora por diversão.

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