1Não IA

O Racismo faz mal para a saúde mental de todos

Por Gilberto Porcidonio no Projeto Colabora

O racismo afeta diretamente a saúde da população negra, resultando em problemas como depressão, ansiedade e doenças cardiovasculares. Não é exagero. É fato comprovado empiricamente. Tanto que, nos últimos anos, uma palavra tem sido cada vez mais utilizada por grupos, coletivos e irmandades dedicadas a combater o preconceito racial: autocuidado. A escritora e jornalista Ana Paula Lisboa sabe muito bem o que é isso. Em 2016, a jovem passou por uma crise de ansiedade muito forte.

Ele já tinha tido um diagnóstico de depressão, após passar por um processo de separação, somado a uma forte autocobrança e a excesso de trabalho. Ao mesmo tempo, não queria voltar a fazer terapia nos moldes tradicionais. “Daí, comecei a buscar o que seria terapêutico para mim, para amenizar algo que não tem cura. Precisava ouvir o meu corpo. Assim, fui para a yoga e para o candomblé, o que revolucionou a minha vida. Fui realmente tratar a cabeça e o espírito”, diz.

É óbvio para todo mundo que o assassinato da Marielle desencadeou essa onda de autocuidado, que fez com que eu parasse para me ouvir e cuidar melhor

Escritora e Jornalista, Ana Paula Lisboa

A escritora, que atualmente mora em Luanda, alerta para o risco dos gatilhos emocionais, isto é, situações diversas que podem desencadear traumas passados. “É óbvio para todo mundo que o assassinato da Marielle (Franco) desencadeou essa onda de autocuidado, que fez com que eu parasse para me ouvir e cuidar melhor. Mas foi bom que, antes mesmo do que aconteceu, eu já soubesse que precisava desse caminho. É possível sair, viver de uma outra forma e com menos demanda”, diz a jovem, que esteve com Marielle em seu último encontro, na Casa das Pretas, na Lapa.

A negra é vista como forte para o trabalho, para aguentar dores físicas e emocionais. Muitas delas absorvem essa ideia e passam a se obrigar a essa resiliência

De acordo com a psicóloga e especialista em clínica psicanalítica Nany Kipenzi Vieira, o autocuidado é uma forma de resistência ou de “re-existência”. Isto é, de marcar uma possibilidade de vida para além daquilo que o racismo impõe a essas mulheres, ressignificando a sua imagem corporal. “Olhando para as mulheres negras que me cercam, sejam pessoas que atendo, familiares e amigas, creio que um dos maiores mitos é o da mulher forte.

A negra é vista como forte para o trabalho, para aguentar dores físicas e emocionais. Muitas delas absorvem essa ideia e passam a se obrigar a essa resiliência imposta. Por conta desse mito, mulheres negras recebem menos anestesia no parto. Isto é algo questionado desde o discurso (“E não sou uma mulher?”) de Soujourner Truth , abolicionista afro-americana e ativista dos direitos da mulher, que contestou a ideia da fragilidade da mulher quando ela e outras mulheres negras nunca foram vistas como frágeis, enquanto eram escravizadas e obrigadas a trabalhar”, detalha.

Para Nany, que também pesquisa relações raciais, de gênero, laicidade e liberdade religiosa, o mito da “negra forte” engessa essas mulheres em um lugar de luta e superação eterna que invisibiliza suas dores e vulnerabilidades. Assim, ela passa ser uma “mulher objeto”, alguém que tem uma serventia, o que se aproxima de outro mito, pois, no lugar de objeto, ela passa a servir também como fetiche sexual. Dessa forma, o corpo da mulher negra é levado para esse lugar do “diferente”, e suas formas passam a ser vistas como exóticas.

“Eu tive o prazer de ouvir Azoilda Loretto da Trindade, pedagoga e psicóloga negra, dizer que uma mulher negra que se cuida é um ato revolucionário. Essa frase me tocou, porque a forma como vivemos as relações em sociedade nos faz perceber que somos todas e todos atravessados pelo racismo e, nessa lógica, não há espaço para o autocuidado. Muitas mulheres me procuram para falar sobre isso. Alguns homens também, mas, com os homens negros, o machismo também é cruel, no sentido de que eles não podem nem reivindicar a fragilidade, pois ela é confundida com fraqueza”, diz.

Dentro dessa preocupação com a chamada masculinidade tóxica foi que o artista visual Fernando Timba conheceu um pouco mais do autocuidado, através de experiências feministas, como a Iniciativa Mesoamericana de Defensoras de Direitos Humanos (IM-Defensoras). Timba se deu conta de que, em sua vida, priorizava o trabalho ou outras atividades que vinham de demandas de outras pessoas, e destinava muito pouco tempo para ele próprio, seja para ler um livro ou para marcar uma consulta médica.

“Participo, com alguma regularidade, de grupos de homens. É um tempo dedicado a falar coletivamente sobre nossas questões individuais e ali vemos o quanto elas reverberam em todos. Depois de frequentar grupos como esses, vi que, na maior parte das vezes, quando estava reunido com outros homens, não falávamos de nós mesmos, mas sempre de algum sujeito externo: futebol, mulheres, trabalho. Nunca de sentimentos”, conta Timba.

O jornalista Alberto Pereira Jr.: ‘autocuidado’ contra riscos à integridade física e mental.

O jornalista Alberto Pereira Jr.: “Escolher os combates e ir em frente é vital e, às vezes, transpor os limites do que seria seguro e confortável”. Foto: José Diego Gasques/Divulgação

Com o jornalista Alberto Pereira Jr., o tema surgiu com o passar dos anos, principalmente, ao entrar para a universidade e se apropriar mais de quem ele era e queria ser. Assim, percebeu que confrontar e ocupar esse espaço era preciso, seja deixando o cabelo – antes, raspado baixinho – crescer, aceitando o black power crespo e sem domá-lo a uma estética padrão: a branca.

“Acredito que autocuidado seja pensar em práticas que possam reduzir as possibilidades de risco à minha integridade física e mental, por ser um homem negro e homossexual, que vive numa grande cidade e em um país em que, embora a população negra seja maioria, é a que mais morre. Escolher os combates e ir em frente é vital e, às vezes, transpor os limites do que seria seguro e confortável. Hoje, tento usar a voz que tenho, minha trajetória, acessos e espaços de diálogos, para me colocar, ouvir o outro, estabelecendo debate e troca”, ressalta.

Então, melaninados, fica o convite: antes de consertar o planeta, vamos arrumar o nosso mundo interno.

Psicologias do Brasil

Informações e dicas sobre Psicologia nos seus vários campos de atuação.

Recent Posts

Série policial que estreou no top 10 da Netflix em 56 países é inspirada em assombroso caso real

A arte imita a vida: Esta série policial de apenas 6 episódios que foi descrita…

11 horas ago

Influencer passou 6 horas em mesa de cirurgia após parte de equipamento de exame de rotina ‘cair no seu coração’

Joey Swoll se diz desgastado física e psicologicamente após a experiência. "Ainda sinto como se…

12 horas ago

Após cirurgia, ‘Homem Dobrado’ finalmente consegue ficar ereto e ter ‘vida normal’

"Estou imensamente grato por poder finalmente dormir deitado", disse o homem.

1 dia ago

Mulher é presa após usar diploma de psicologia falso para atender crianças com autismo

Segundo a Polícia, a mulher pagou R$ 5 mil em um diploma falso de psicologia,…

1 dia ago

Nova série do criador de Peaky Blinders já está disponível no streaming

A aguardada nova série estrelada pela vencedora do Emmy Elisabeth Moss chegou ao streaming nesta…

2 dias ago

É crescente o número de mulheres que aderem à abstinência de homens

“Estamos nos libertando dessa falsa obrigação de ter ao lado um marido ou um namorado.…

2 dias ago