A enxurrada de expressões contra a corrupção no cenário atual traz à tona outra questão, clichê, mas ainda insuficientemente debatida: a corrupção, vastamente associada ao panorama político, seria a ampliação do denegrido “jeitinho brasileiro”?

É inegável que a desonestidade não se limita ao sistema político de nosso país, e uma das atitudes mais apontadas como indignas envolve a intenção de tirar proveito de algo ou alguém, enganando e prejudicando em prol de interesses pessoais.

A certeza de comprar um bom produto torna admissível o inocente beliscão nas frutas do supermercado para prová-las? Ignorar o idoso em pé enquanto estamos confortavelmente sentados é aceitável devido ao nosso dia cansativo de trabalho?

Usar sinal clandestino de TV a cabo; comprar produtos falsificados; burlar a fiscalização; estacionar em local impróprio ou destinado à outra pessoa; receber benefícios sociais de modo indevido ou ilegal: algumas das inúmeras formas de se obter vantagens e conveniências, roubando direitos de outra pessoa, sem considerar princípios éticos e morais. As injustiças diárias podem ter grandes implicações, não percebidas diante do automatismo cotidiano.

A quantidade de pessoas prejudicadas enquanto alguém tira proveito de benefícios que não lhe pertencem não pode ser usada como parâmetro para avaliar o grau de desonestidade perpetrado. Apesar de haver consequências distintas entre falsificar carteirinha estudantil e desviar verba da merenda escolar, um ato desonesto é sempre nefasto. Tanto é desonesto quem não devolve o troco recebido a mais, quanto quem rouba uma nação inteira.

E se não praticamos tais coisas, mas as observamos passivamente? Então, estamos beneficiando os comportamentos imorais com nossa omissão e alimentando a corrupção. A atitude imoral ou ilícita que não é censurada, impedida ou penalizada serve como combustível para novas e maiores atitudes corruptas, estimuladas pela certeza de que trarão vantagens pessoais livres de repreensão social. Ao cedermos lugar na fila para o sujeito furão, a menos que seja uma situação de emergência, não estamos sendo solidários, mas reforçando uma atitude inadequada e prejudicando o restante da fila. Embora não tenhamos provocado o acúmulo de lixo no quintal do vizinho, não somos isentos de responsabilidade e nossa omissão diante disso pode ser tão perigosa quanto a água parada concentrada ali.

Mas o que torna alguém corrupto? Entre tantos possíveis fatores, o papel que a família desempenha se destaca como fundamental no processo de internalização das leis, além de promover a tolerância à frustração da criança. Conforme vamos ingressando no mundo, ainda muito jovens, devemos ir compreendendo que nossas vontades não podem ser soberanas e que para vivermos em sociedade precisamos abrir mão de desejos – infantis e narcisistas.

Sentir-se superior e mais esperto que os demais ao obter uma vantagem indevida também influencia comportamentos desonestos. Ademais, ao corrupto faltam capacidades empáticas que o impedem de se colocar no lugar do outro, de imaginar como o outro se sente e se sensibilizar com sua dor. A empatia norteia as ações para longe do que teria por consequência o prejuízo ou sofrimento ao outro, além de envolver a capacidade de sentir culpa pelo dano que causou e se preocupar em repará-lo. Preso em seus próprios interesses, o corrupto é movido apenas na direção do que lhe é conveniente e traz ganhos pessoais.

Muitas vezes, para muitas pessoas, a perspectiva de um lucro significativo, mesmo que indevido, associado a circunstâncias favoráveis bastam para tornar a corrupção algo tentador. Apontar a desonestidade como aspecto inerente a um determinado grupo como fenômeno que se detém ao ambiente político é uma tentativa de isolar a corrupção, negando a proximidade dela no dia a dia.

A corrupção implica a falha na internalização das leis, éticas e morais, estabelecidas para o convívio social. Quando a instância fiscalizadora está instalada dentro do indivíduo, este não necessita de intervenções corretivas das leis externas. Entretanto, na ausência de leis internas, é necessário que elas sejam impostas externamente pela sociedade. Integrantes da mesma comunidade, somos todos responsáveis por seus problemas e soluções. Somos modeladores dos enredos e contextos nos quais vivemos.  

Marciane Sossmeier

Psicóloga clínica com enorme interesse nos processos e mecanismos envolvidos nas interações e comportamentos humanos. Com orientação psicanalítica, mantém uma abordagem integral do ser humano e sua subjetividade. Graduada pela Universidade de Passo Fundo (UPF) e pós-graduanda em Dinâmicas das Relações Conjugais e Familiares pela Faculdade Meridional (IMED). .

Recent Posts

Filme de suspense que recebeu uma enxurrada de prêmios é uma das boas opções da Netflix

Um intrincado suspense psicológico que trata de temas muito profundos ao mesmo tempo em que…

20 horas ago

Billie Eilish desabafa sobre problemas com saúde mental: “Nunca fui uma pessoa feliz”

A cantora norte-americana de 22 anos contou que sempre sofreu com a depressão e que,…

21 horas ago

Quem era a psicóloga que foi morta dentro do próprio consultório no interior do RN

A psicóloga Fabiana Fernandes Maia Veras, de 42 anos, foi morta dentro do próprio consultório…

1 dia ago

Para ver na Netflix: A mais perfeita adaptação cinematográfica de um romance de Jane Austen

Um filme que aquece o coração e permanece na memória por muito tempo depois dos…

2 dias ago

Meu ex-marido se casou com minha ex-terapeuta

A advogada Ana Serafim, de 46 anos, viralizou nas redes sociais ao compartilhar um vídeo…

2 dias ago

Psicóloga é encontrada sem vida em clínica; suspeito pelo crime é ex-marido de paciente da vítima

De acordo com informações da Polícia Civil, o suspeito se aproximou da psicóloga para conseguir…

2 dias ago