Desligue a televisão (ou o computador) e vá dormir

Por Tiago Ramos

Se você for minimamente parecido comigo, um dos maiores prazeres da sua vida é chegar em casa depois de um dia puxado no trabalho. Nossos sofás, fieis escudeiros. São neles, afinal, que realizamos nossas leituras, jogamos nossos games e assistimos televisão. No tocante a esta última atividade, você talvez já tenha percebido que temos dedicado cada vez mais tempo às séries de TV. Se observarmos a evolução dos interesses da cultura pop no milênio atual, chegaremos à inevitável conclusão de que nenhum outro formato narrativo tem capturado tanto a atenção das pessoas quanto a safra recente de seriados norte-americanos.

Ao mesmo tempo em que consumimos cada vez mais histórias contadas em capítulos, paradoxalmente agimos de maneira a minimizar o aspecto serial que tanto nos fascina. Olhe para si mesmo: quantas vezes você não foi dormir mais tarde do que de costume para “ver só mais um episódio”? Quantas vezes aquela surpresa logo antes dos créditos finais tornou impossível esperar pelo dia ou semana seguintes? Seria essa, porém, a melhor experiência que os programas podem nos proporcionar? Na mesma medida em que as séries vêm experimentando um boom de popularidade desde meados da década passada, parecemos ter nos esquecido dos prazeres escondidos na angústia da espera pelo que vem a seguir.

As melhores narrativas sempre levam em conta as limitações e virtudes de seus formatos, de modo a melhor explorar suas características inerentes. A boa história serial também possui mecanismos e encantos próprios. Vejamos: apesar de fazer parte de algo maior, cada capítulo deve proporcionar uma experiência satisfatória por si só, com início, meio e fim bem definidos. O episódio deve ser coerente com o que veio antes, ao mesmo tempo em que prepara o terreno para os próximos passos do enredo.

E, claro, os ganchos precisam assegurar o retorno do espectador no próximo dia, semana, mês ou ano. O que o bom cliffhanger oferece, na verdade, é o prolongamento do entretenimento gerado pelo episódio para além de sua duração: a especulação, solitária ou com outros fãs da narrativa, sobre as possíveis saídas para os problemas criados pelos roteiristas; a euforia da chegada do dia em que finalmente descobriremos o destino daquele personagem que tanto nos cativa; a construção e refinamento de expectativas ao longo do tempo, tornando as reviravoltas ainda mais impactantes. Tais experiências e sensações são mitigadas (ou mesmo extintas) quando tudo o que buscamos ao final do capítulo são respostas imediatas.

Para tornar nossa conversa menos teórica, basta lembrar de Lost (2004-2010). Maior fenômeno da história recente da televisão, poderíamos muito bem argumentar que os debates originados após cada episódio foram tão ou mais envolventes do que a própria narrativa. Faça um pequeno exercício junto comigo e procure imaginar se o programa despertaria o mesmo interesse se tivesse sido lançado no modelo Netflix, com a temporada inteira disponibilizada de uma vez.

Se você acha que sim, talvez a realidade forneça uma boa prova em contrário: compare as reações a um dos últimos lançamentos exclusivos do serviço de streaming, Daredevil (2014 – ), com outras séries de super-heróis (para utilizarmos parâmetros mais ou menos equivalentes) exibidas na TV tradicional. Enquanto o diálogo relacionado ao seriado da Netflix não foi muito além das recomendações entusiasmadas e extinguiu-se rapidamente, outros tantos debateram, durante meses, as verdadeiras intenções do Dr. Harrison Wells (em The Flash, 2014 – ) ou a luta por sobrevivência de Coulson e sua equipe após o esfacelamento da instituição a que pertenciam (em Agents of S.H.I.E.L.D., 2013 – ).

O intervalo entre episódios proporciona, ainda, um menor desgaste das fórmulas dos programas, daquela estrutura própria que a avassaladora maioria das séries aplica em boa parte de seus capítulos. Um bom exemplo é House (2004-2012), com os pacientes da semana, seus dramas que de alguma maneira refletem os problemas do médico rabugento (ou de seus pupilos) e a evolução mínima nos arcos da temporada. Após dois ou três capítulos consecutivos, voltamos nosso foco aos elementos que realmente nos interessam, ignorando todo o resto.

Quando assistimos aos episódios ao longo de um período de tempo mais espaçado, cansamo-nos menos dos seus aspectos mais familiares. Tendemos, ainda, a dedicar maior atenção a cada um deles, aguçando a nossa percepção de suas qualidades (e de seus defeitos, é bem verdade). Nosso tempo diante da televisão torna-se – e o adjetivo que usarei em seguida pode até soar meio infantil, mas é o ideal para a situação – mais divertido.

Obviamente, é difícil resistir à tentação quando se tem tudo ao mesmo tempo agora. A facilidade de acesso a temporadas completas, por meio da… generosidade da internet, caixas de DVDs e Blu-Rays ou via streaming e video on demand, não nos fornece razões imediatamente claras para assisti-los em doses homeopáticas. Ademais, a combinação entre um mercado saturado de séries e nossa disposição em abraçar novos programas faz com que os episódios se acumulem com extrema facilidade.

Adicione à fórmula as ansiedades de nossas vidas modernas e voilà: sobram motivos para terminar de ver o que estamos acompanhando o mais rápido possível e passarmos para o próximo título de nossa (sempre crescente) lista. A situação é agravada quando nos interessamos por um programa somente depois de alguns anos desde seu início, sendo então compelidos a recuperar o tempo perdido. Você certamente não terá grandes dificuldades em encontrar um amigo que atravessou quatro temporadas de Breaking Bad (2008-2013) em poucas semanas diante do burburinho ao redor do seu último ano.

Por outro lado, o ato de se assistir a múltiplos episódios em sequência (definido em inglês pela expressão binge watching) também possui vantagens particulares. O já mencionado modelo Netflix de publicação de conteúdo dá aos produtores e roteiristas a oportunidade de desenvolver enredos com maior complexidade, mais próximos a um filme de treze horas de duração ou um livro com uma dúzia de capítulos.

Se há a consciência de que seu público consumirá a narrativa em blocos maiores do que pedaços isolados de aproximadamente 50 minutos, uma quantidade menor de tempo e energia pode ser investida em ganchos forçados e em recapitulações de eventos em prol de caracterização de personagens e elaboração da trama. Hipoteticamente, a perda em apelo popular e reverberação online seria compensada por um ganho em qualidade.

Não podemos esquecer, ainda, do aspecto interativo das narrativas em série. Às vezes, o consumo acelerado de capítulos decorre de uma necessidade de “emparelhamento” com a respectiva comunidade de fãs. Sacrificam-se, portanto, os prazeres decorrentes da espera previamente listados em favor de outros, de cunho social. Programas como Lost, 24 Horas (2001-2010) e Game of Thrones (2011 – ) devem uma grande parcela de seu sucesso ao público que chegou “atrasado” às suas tramas e que passou a acompanhá-las religiosamente após o alinhamento com as temporadas mais recentes (ou em curso).

Por fim, outra boa razão a favor do binge watching é a permanente tentativa de escapar dos famigerados spoilers. Sob essa ótica, podemos notar um fenômeno interessante. Observe como, no final da década passada, os programas com histórias contínuas de maior interesse para a cultura pop se baseavam em conceitos originais, criados para o formato em que foram executados: Lost, 24 Horas, Heroes (2006-2010), Desperate Housewives (2004-2012) e Prison Break (2005-2009). Então, não havia outra maneira de saber como a trama iria continuar a não ser esperar pelos capítulos conforme iam ao ar.

Hoje, em contraste, os dois principais fenômenos da televisão consistem em adaptações de material pré-existente: Game of Thrones e The Walking Dead (2010 – ). A ansiedade em descobrir como as tramas das séries de TV continuam, aliada à tensão de algum leitor estraga-prazeres dar com a língua nos dentes, transformou os livros de George R. R. Martin e os quadrinhos de Robert Kirkman em fenômenos de vendas (no último caso, muito mais nos Estados Unidos do que no Brasil).

Você certamente conhece alguém que não possui o hábito da leitura, mas enfrentou com vigor os tomos de Game Of Thrones. Ou que não acompanha HQs, mas devorou as quase 150 edições de The Walking Dead já publicadas. Sai o binge watching, entra em cena o binge reading. Ao menos aqui, há a expansão dos horizontes do aficionado por mídias audiovisuais a partir do momento em que ele encosta a ponta do pé no mar de outros veículos narrativos, algo sempre salutar.

 

Colocando as duas maneiras de assistir televisão na balança, o espaçamento no consumo dos episódios me parece apresentar uma experiência mais completa, na qual as virtudes do formato serial são melhor usufruídas. Na medida em que nosso contato com o universo dos seriados prolonga-se no tempo – e, como exposto anteriormente, não se restringe às horas em que estamos na frente da TV – desenvolvemos um envolvimento maior com o enredo que acompanhamos e seus personagens.

Afinal, não é a criação de laços afetivos entre público e narrativa um dos mais nobres propósitos da arte? O progressivo afastamento de Game of Thrones e The Walking Dead de suas fontes impressas pode ser a oportunidade perfeita para você voltar a sofrer semana após semana – e aprender a adorar cada angustiante dia de espera. Quanto às demais séries, e tendo em vista que a maioria encontra-se em hiato até meados de setembro, esta talvez seja a ocasião ideal para pensar um pouco sobre o assunto. Mas deixe isso para amanhã. Hoje? Desligue a televisão – ou o computador – e vá dormir.

TEXTO ORIGINAL DE BRASILPOST






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