A última longa entrevista de Sigmund Freud

Por CARLOS WILLIAN LEITE, via Revista Bula

Sigmund Freud (1856-1939), o judeu austríaco fundador da psicanálise, formou-se em medicina em Viena. Aperfeiçoou seus estudos em Paris, com Jean-Marie Charcot, que usava a hipnose como tratamento para a histeria. Ao romper com Charcot e com a prática da hipnose, Freud se deparou com o mecanismo de defesa dos pacientes e pode então desenvolver a teoria do inconsciente e sua própria técnica terapêutica, baseada na livre associação de ideias. Para o médico austríaco, a neurose adulta era resultado da sexualidade infantil. Em 1900, Freud publicou “A Interpretação dos Sonhos”, seu primeiro trabalho revolucionário — obra que ele havia terminado anos antes mas que guardou para lançá-la no despertar de um novo século. Ele tinha razão ao adiá-lo: o século 20 foi o tempo de Sigmund Freud. Em 1938, quando os nazistas anexaram a Áustria, depois de terem banido a psicanálise da Alemanha, Freud imigrou para a Inglaterra em companhia de sua Anna, que se tornaria conhecida como psicóloga infantil. Freud morreu de câncer na garganta.

Entrevista conduzida por George Sylvester Viereck, publicada no seu livro: “Glimpses of the Great”, publicado em 1930, e republicada no livro: “A Arte da Entrevista: Uma Antologia de 1823 aos Nossos Dias,” organizado por Fábio Altman (Scritta 1995).

“Setenta anos de idade me ensinaram a aceitar a vida com alegre humildade.”

Quem fazia essa declaração era o professor Sigmund Freud, o grande explorador austríaco do lado oculto da alma. Assim como o trágico herói grego Édipo, cujo nome está tão intimamente ligado aos princípios fundamentais da psicanálise, Freud confrontou a Esfinge sem receio. Como Édipo, ele decifrou o enigma. Pelo menos, nenhum mortal chegou tão perto dos segredos do comportamento humano quanto Freud.Freud é para a psicologia o que Galileu foi para a astronomia. É o Cristóvão Colombo do inconsciente. Ele abre novas perspectivas, sonda novas profundezas. Freud alterou todas as relações na vida, decifrando o sentido oculto das regras do inconsciente. Conversamos na casa de veraneio de Freud em Semmering, uma montanha nos Alpes Austríacos, onde os vienenses elegantes adoram se reunir. A última vez que vira o pai da psicanálise, ele estava em sua casa simples na capital austríaca. Os poucos anos que separavam a minha última visita desta de agora multiplicaram as rugas na sua testa e aumentaram a sua palidez acadêmica. Seu rosto estava abatido, sofrido. A mente estava ativa, o espírito firme, a cortesia impecável como sempre, mas uma leve problema de fala me preocupou.

Parece que uma doença maligna no maxilar superior necessitara de uma operação. Desde então, Freud usa um aparelho mecânico para facilitar a fala. Na verdade, não há diferença entre o uso desse aparelho ou de óculos. Ele deixa Freud mais constrangido do que os visitantes. Depois que conversamos com ele por algum tempo, o aparelho se torna quase imperceptível. Nos dias em que Freud está bem, nem se percebe a presença dele. Mas para Freud, ele é causa de constante irritação.

Sigmund Freud — Eu detesto o meu maxilar mecânico porque a luta com o mecanismo consome uma força preciosa. Mas é melhor ter um maxilar mecânico do que nenhum. Ainda prefiro viver a morrer. Talvez os deuses sejam generosos conosco, tornando a vida mais desagradável à medida em que envelhecemos. No final, a morte parece mais tolerável do que os muitos problemas que temos que enfrentar.

(Freud se recusa a admitir que o destino tenha sido rancoroso com ele.)

Sigmund Freud — Por que, eu devia esperar por algum tipo de privilégio? A idade, com seus visíveis desconfortos, chega para todos. Ela atinge um homem aqui, outro lá. O seu golpe sempre atinge uma parte vital.
Sigmund Freud — Não me revolto contra a ordem universal, afinal vivi mais de setenta anos. Eu tive o que comer. Desfrutei de muitas coisas — do companheirismo da minha esposa, dos meus filhos, do pôr-do-sol. Eu vi as plantas crescerem na primavera. Algumas vezes recebi um aperto de mão amigo. Uma ou duas vezes encontrei um ser humano que quase me entendeu. O que mais eu posso querer?

George Sylvester Viereck — O senhor é famoso. O seu trabalho influencia a literatura de todo o mundo. O homem olha para si e para a vida com olhos diferentes por sua causa. E, há pouco tempo, quando o senhor fez 70 anos, o mundo se uniu para homenageá-lo — com exceção da sua própria universidade!

Sigmund Freud — Se a Universidade de Viena me aceitasse, eu teria me sentido muito constrangido. Não há razão para eles me aceitarem ou à minha doutrina porque eu estou com 70 anos. Não dou nenhuma importância ilógica aos números. A fama só chega quando já estamos mortos, e, para ser franco, o que acontece depois da morte não me interessa. Não aspiro à glória póstuma. A minha modéstia não é nenhuma virtude.

George Sylvester Viereck — O fato do seu nome ser lembrado não significa nada para o senhor?

Sigmund Freud — Absolutamente nada, mesmo que ele seja realmente lembrado, o que não é certo. Eu estou mais interessado no destino dos meus filhos. Espero que a vida deles não seja tão difícil. Não posso torná-las muito mais fácil. A guerra praticamente acabou com a minha modesta fortuna, as economias de uma vida inteira. Entretanto, felizmente, a idade não pesa tanto para mim. Eu ainda sou capaz de seguir em frente! Meu trabalho ainda me dá prazer.
Sigmund Freud — Estou muito mais interessado nestas flores do que no que possa acontecer comigo depois que eu morrer.

George Sylvester Viereck — Então, no fundo, o senhor é um pessimista?

Sigmund Freud — Não, não sou. Só que eu não permito que nenhuma reflexão filosófica me tire a alegria das coisas simples da vida.

George Sylvester Viereck — O senhor acredita na continuidade do ser após a morte, seja lá de que maneira for?

Sigmund Freud — Eu não penso nesse assunto. Tudo o que nasce, um dia morre. Por que então eu também não morreria?

George Sylvester Viereck — O senhor gostaria de retornar à vida, assumindo uma nova forma? Em outras palavras, o senhor não gostaria de ser imortal?

Sigmund Freud — Para ser franco, não. Quem identifica as razões egoístas que se escondem sob o comportamento humano não tem a menor vontade de voltar. A vida, movendo-se em círculos, ainda seria a mesma. Além disso, mesmo que o eterno retorno de todas as coisas, como disse Nietzsche, nos vestisse com novas roupas, que utilidade isso poderia ter sem a memória? Não haveria ligação entre o passado e o futuro. No que me diz respeito, estou muito satisfeito em saber que o eterno absurdo de viver terminará um dia. Nossa vida se resume a uma série de obrigações, uma luta sem fim entre o ego e o seu ambiente. O desejo de um prolongamento excessivo da vida me parece absurdo.

George Sylvester Viereck — O senhor não aprova as tentativas do seu colega Steinach de prolongar o ciclo da existência humana?

Sigmund Freud — Steinach não faz nenhuma tentativa para prolongar a vida. Ele simplesmente luta contra a velhice. Ao aumentar a reserva de forças que temos dentro de nós, ele ajuda o corpo a resistir à doença. A operação de Steinach às vezes detém os acidentes biológicos, como o câncer, nos seus primeiros estágios. Ela toma a vida mais tolerável. Mas não a torna mais feliz. Não há razão para que o homem queira viver mais. Mas temos todas as razões para querer viver com o mínimo de desconforto possível. Sou bastante feliz, porque não sinto dores e sou grato aos pequenos prazeres da vida, aos meus filhos e às minhas flores!

George Sylvester Viereck — Bernard Shaw diz que vivemos muito pouco. Ele acha que, se quiser, o homem pode prolongar o tempo de vida humana, se a força de vontade suplantar as forças da evolução. A humanidade, segundo ele, pode recuperar a longevidade dos patriarcas.

Sigmund Freud — É possível que a morte em si não seja uma necessidade biológica. Talvez os homens morram porque queiram morrer. Assim como o amor e o ódio pela mesma pessoa coexistem dentro de nós, a vida é uma mistura do desejo de viver com o desejo ambivalente de morrer. Da mesma forma que um elástico tende a voltar ao seu formato original, toda matéria viva, consciente ou inconscientemente, anseia pela inércia completa e absoluta da existência inorgânica. Os desejos de morrer e de viver convivem lado a lado dentro de nós. A Morte é a companheira do Amor. Juntos, eles governam o mundo. Essa é a mensagem do meu livro, Além do princípio do prazer. No início, a psicanálise achava que o Amor era o sentimento mais importante. Hoje, sabemos que a Morte tem a mesma importância. Biologicamente, todo ser humano, não importando a intensidade do seu desejo de viver, anseia pelo Nirvana, pela fim da febre chamada vida, pelo seio de Abraão. O desejo pode ser disfarçado por rodeios. Entretanto o objetivo final da vida é a própria extinção!

 

George Sylvester Viereck — Essa, exclamei, é a filosofia da autodestruição. Ela justifica o automassacre. Levaria à conclusão lógica do suicídio mundial previsto por Eduard von Hartmann.

Sigmund Freud — A humanidade não escolhe o suicídio, porque as leis da sua natureza não aceitam o caminho direto para a própria meta. A vida deve completar o seu ciclo de existência. Em qualquer ser humano normal, o desejo de viver é o bastante para compensar o desejo de morrer, embora, no final, o desejo de morrer prove ser mais forte. Nós podemos considerar a ideia de que a morte nos chega por vontade própria. É possível que derrotássemos a morte, não fosse pelo aliado que ela tem dentro de nós mesmos. Nesse sentido, talvez seja certo dizer que toda morte é um suicídio disfarçado.

George Sylvester Viereck — Em que o senhor está trabalhando?

Sigmund Freud — Estou escrevendo uma defesa da análise leiga, a psicanálise praticada por leigos. Os médicos querem tornar ilegal a análise feita pelos que não são médicos registrados. A história, essa velha plagiadora, se repete a cada nova descoberta. Os médicos, a princípio, combatem qualquer nova verdade. Depois eles tentam monopolizá-la.

George Sylvester Viereck — O senhor teve um grande apoio dos leigos?

Sigmund Freud — Alguns dos meus melhores alunos são leigos.

George Sylvester Viereck — O senhor pratica a psicanálise com muita frequência?

Sigmund Freud — Claro. Nesse exato momento, eu estou trabalhando em um caso difícil, esclarecendo os conflitos psíquicos de mais um paciente interessante. Minha filha também é uma psicanalista, como o senhor pode ver…

(Nesse momento, a senhorita Anua Freud surgiu seguida por seu paciente, um rapaz de 11 anos, de feições obviamente anglo-saxônicas. O menino parecia muito feliz, esquecido do conflito da própria personalidade.)

George Sylvester Viereck — O senhor se autoanalisa?

Sigmund Freud — É claro. O psicanalista deve se autoanalisar com frequência. Ao nos analisarmos, nos tornamos mais capazes de analisar outras pessoas. O psicanalista é como o bode expiatório dos hebreus. As pessoas colocam a culpa dos seus pecados nele. Ele deve exercer a sua arte com perfeição para se livrar do peso colocado sobre ele.

George Sylvester Viereck — Sempre me pareceu que a psicanálise desperta em todos aqueles que a praticam o espírito da caridade cristã. Não há nada na vida humana que a psicanálise não nos permita entender.

Sigmund Freud — Pelo contrário — (enfureceu-se Freud, as feições assumindo a severidade arrebatada de um profeta hebreu) — entender não é perdoar. A psicanálise não apenas nos ensina o que temos que suportar, ela também ensina o que temos que evitar. Ela nos diz o que deve ser eliminado. A tolerância do mal não é, de maneira nenhuma, uma consequência do conhecimento.

(De repente eu entendi por que Freud brigara tão seriamente com os seguidores que o abandonaram, por que ele não consegue perdoar aqueles que se afastaram do caminho da psicanálise ortodoxa. O seu senso de integridade é uma herança dos seus ancestrais. Uma herança da qual ele se orgulha, assim como se orgulha da própria raça.)

Sigmund Freud — Minha língua é o alemão. Minha cultura, minhas conquistas são alemãs. Considerei-me um alemão do ponto de vista intelectual, até que percebi o crescimento do antissemitismo na Alemanha e na Áustria alemã. Desde então, não me considero mais um alemão. Prefiro me considerar um judeu.

George Sylvester Viereck — Estou feliz Professor, que o senhor também tenha os seus complexos, que o senhor também exponha a sua mortalidade.

Sigmund Freud — Os nossos complexos são a fonte da nossa fraqueza e, com frequência, também da nossa força.

George Sylvester Viereck — Quais seriam os meus complexos?

Sigmund Freud — Uma análise séria levaria, pelo menos, um ano. Talvez demorasse até mesmo uns dois ou três anos. O senhor tem dedicado muitos anos da sua vida à caça de leões. O senhor tem procurado, ano após ano, as grandes personalidades da sua geração, invariavelmente homens mais velhos.

George Sylvester Viereck — Isso é parte do meu trabalho.

Sigmund Freud — Mas também é uma preferência. O homem importante é um símbolo. A sua busca é afetiva. O senhor está à procura do homem importante que irá tomar o lugar do seu pai. Isso é parte do complexo que o senhor tem em relação ao seu pai.

(Neguei a afirmação de Freud com veemência. Entretanto, após refletir, parece-me que pode haver alguma verdade, insuspeita para mim, na sua sugestão casual. Talvez seja o mesmo impulso que me levou a ele.)

George Sylvester Viereck — No seu trabalho “O Judeu Errante”, o senhor estende essa busca ao passado. O senhor é o eterno Explorador do Homem. Eu queria poder ficar aqui durante o tempo que fosse necessário para ver o meu interior através dos seus olhos. Talvez, como a Medusa, eu morresse de medo ao ver minha própria imagem! Entretanto acho que conheço bastante a psicanálise. Eu iria prever, ou tentar prever, as suas intenções.

Sigmund Freud — A inteligência de um paciente não é um empecilho. Pelo contrário, às vezes, ela facilita o trabalho.

(Nesse aspecto, o mestre da psicanálise difere de muitos dos seus adeptos, que se ressentem de qualquer dedução feita pelos próprios pacientes sob os cuidados deles. A maioria dos psicanalistas emprega o método da “livre associação” de Freud. Eles encorajam o paciente a dizer qualquer coisa que lhes venha à cabeça, não importando o quanto o que dizem possa ser idiota, obsceno, inoportuno ou irrelevante. Seguindo pistas que parecem não ter importância, encontram os dragões psíquicos que assustam o paciente, afugentando-os. Eles não apreciam o desejo de cooperação ativa do paciente, pois têm medo que, quando descoberta a direção da sua investigação, os desejos e a resistência do paciente lutem inconscientemente para manter seus segredos, desviando o caçador psíquico da sua pista. Freud também reconhece esse perigo.)

George Sylvester Viereck — Às vezes eu penso se nós não seríamos mais felizes se conhecêssemos menos o processo que forma os nossos pensamentos e emoções. A psicanálise tira o encantamento da vida, quando segue a pista de cada um dos sentimentos até os seus complexos básicos. Não ficamos mais felizes ao descobrir nosso lado selvagem, criminoso e animal.

Sigmund Freud — O que o senhor tem contra os animais? A comunidade animal é infinitamente melhor do que a humana.

George Sylvester Viereck — Por quê?

Sigmund Freud — Porque os animais são muito mais simples. Eles não sofrem de personalidade dividida ou desintegração do ego, problemas que surgem da tentativa do homem de se adaptar a padrões de civilização que são sofisticados demais para o seu mecanismo intelectual e psíquico. O selvagem, assim como o animal, é cruel, mas ele não tem a maldade do homem civilizado. A maldade é a vingança do homem contra a sociedade pelas restrições impostas a ele. É essa vingança que dá vida ao reformista profissional e às pessoas intrometidas. O selvagem pode cortar a sua cabeça, comê-lo, torturá-lo. Mas ele vai poupá-lo das pequenas provocações que, às vezes, tornam a vida em uma comunidade civilizada quase intolerável. Os hábitos e as idiossincrasias mais desagradáveis do homem, como a trapaça, a covardia e a falta de respeito, são produzidos pela sua adaptação incompleta a uma civilização complicada. É o resultado do conflito entre os nossos instintos e a nossa cultura. As emoções intensas, diretas e simples de um cachorro, ao abanar o rabo ou latir quando é contrariado, são muito mais agradáveis! As emoções de um cachorro me fazem lembrar um dos heróis da antiguidade. Talvez seja por isso que nós inconscientemente damos aos cães nomes de heróis da antiguidade como Aquiles ou Heitor.

George Sylvester Viereck — Até mesmo o senhor, professor, acha a existência muito complexa. No entanto, me parece que o senhor mesmo é, em parte, responsável pela complexidade da civilização moderna. Antes que o senhor inventasse a psicanálise ninguém sabia que a personalidade era dominada por um exército beligerante de complexos bastante censuráveis. A psicanálise fez da vida um complicado quebra-cabeça.

Sigmund Freud — De jeito nenhum. A psicanálise simplifica a vida. Nós atingimos uma nova síntese depois da análise. A psicanálise cria uma nova ordem para o labirinto onde estão perdidos certos impulsos, e tenta conduzi-los para o lugar ao qual pertencem. Ou, usando outra metáfora, ela é o fio que conduz o homem para fora do labirinto do seu próprio inconsciente.

George Sylvester Viereck — Em uma visão superficial, parece, entretanto, que a vida humana nunca foi tão complexa. E, a cada dia, alguma nova ideia, apresentada pelo senhor ou por um dos seus discípulos, torna o problema do comportamento humano mais enigmático e contraditório.

Sigmund Freud — Pelo menos a psicanálise nunca fecha as portas para uma nova verdade.

George Sylvester Viereck — Alguns dos seus alunos, mais ortodoxos do que o senhor, se agarram a qualquer declaração que o senhor faça.

Sigmund Freud — A vida muda e a psicanálise também. Estamos só no princípio de uma nova ciência.

George Sylvester Viereck — Eu acho a estrutura científica que o senhor criou muito complexa. E os elementos dessa estrutura, como a teoria da substituição, da sexualidade infantil, do simbolismo dos sonhos, etc., parecem permanentes.

Sigmund Freud — No entanto, torno a dizer, nós só estamos começando. Sou apenas um principiante. Consegui trazer à tona muito do que estava enterrado nas camadas mais profundas da mente. Mas, enquanto eu só descobri alguns templos, outros podem descobrir um continente.

George Sylvester Viereck — O senhor ainda dá grande importância ao sexo?

Sigmund Freud — Eu respondo com as palavras do grande poeta Walt Whitman: “Mas não haveria nada, se não houvesse o sexo”. Entretanto, como já disse, hoje em dia, eu dou a mesma importância ao que está além do prazer — a morte, a negação da vida. Esse desejo explica porque alguns homens gostam da dor — ela representa um passo em direção à morte! O desejo da morte explica por que todos os homens procuram o descanso eterno, por que os poetas agradecem:”Onde quer que os deuses estejam,
Não há vida que viva para sempre
Os homens mortos nunca renascem,
E até o rio mais enfastiado
Segue confiante na direção do mar”.

George Sylvester Viereck — Shaw, como o senhor, não deseja viver para sempre, mas ele acha o sexo desinteressante.

Sigmund Freud — Shaw (respondeu Freud, sorrindo), não entende o sexo. Ele não faz a mais remota ideia do que seja o amor. Não existe nenhum relacionamento amoroso real nas suas peças. Ele transforma o caso de amor de César — talvez a maior paixão da história — em uma piada. Deliberadamente, para não dizer maliciosamente, ele despe Cleópatra de todo o seu esplendor e a rebaixa à condição de uma mulher insignificante, petulante e exagerada. A razão para a estranha atitude de Shaw em relação ao amor e para a sua negação do impulso primordial de todas as ações humanas, o que tira de suas peças o atrativo universal apesar da sua grande inteligência, está na natureza da sua psicologia. Em um de seus prefácios, Shaw enfatiza o aspecto ascético da sua personalidade. Posso ter cometido muitos erros, mas tenho certeza que não errei ao enfatizar a predominância do instinto sexual. Porque o instinto sexual é tão forte que se choca com muita frequência contra as convenções e salvaguardas da civilização. A humanidade, em defesa própria, procura negar a importância suprema do sexo. Analise qualquer emoção humana, não importa o quanto ela esteja distante da esfera do sexo, e o senhor vai encontrar com certeza, em algum lugar, o impulso primordial, ao qual a própria vida deve a sua perpetuação.

George Sylvester Viereck — É certo que o senhor conseguiu incutir o seu ponto de vista sobre todos os escritores modernos. A psicanálise deu nova força à literatura.

Sigmund Freud — Ela também recebeu contribuições da literatura e da filosofia. Nietzsche foi um dos primeiros psicanalistas. É incrível o quanto a intuição dele se antecipou às nossas descobertas. Ninguém identificou com mais clareza as razões para o comportamento humano e a luta do princípio do prazer pelo eterno domínio. O seu Zaratustra diz:”Desgraça
Grite: Vá
Mas o prazer implora por eternidade,
Implora insaciável, profunda eternidade”.Pode ser que a psicanálise seja menos discutida na Áustria e na Alemanha do que nos Estados Unidos, mas a sua influência sobre a literatura, no entanto, é enorme. Thomas Mann e Hugo von Hofmansthal nos devem muito. Schnitzler acompanha, em grande parte, o meu desenvolvimento. Ele expressa através da poesia muito do que eu tento transmitir cientificamente. Mas o doutor Schnitzler não é apenas um poeta, ele é também um cientista.

George Sylvester Viereck — O senhor não é apenas um cientista, é também um poeta. A literatura americana está impregnada pela psicanálise. Rupert Hughes, Harvey O’Higgins e outros são seus intérpretes. É quase impossível abrir um novo romance recente sem encontrar alguma referência a psicanálise. Entre os dramaturgos, Eugene O’Neill e Sydney Howard devem muito ao senhor. “The Silver Cord” (O Cordão de Prata), por exemplo, é uma mera dramatização do complexo de Édipo.

Sigmund Freud — Eu sei disso, sou grato pelo reconhecimento, mas temo pela minha própria popularidade nos Estados Unidos. O interesse dos americanos pela psicanálise não é muito profundo. A grande popularidade leva à aceitação superficial sem uma pesquisa séria. As pessoas apenas repetem o que escutam no teatro ou leem nos jornais. Eles pensam que compreendem a psicanálise, porque conseguem repetir o nosso jargão! Eu prefiro o estudo mais intenso da psicanálise nos centros europeus. Os Estados Unidos foram o primeiro país a me reconhecer oficialmente. A Clark University me conferiu um grau honorário quando eu ainda estava condenado ao ostracismo na Europa. No entanto os Estados Unidos contribuíram muito pouco para o estudo da psicanálise. Os americanos são generalizadores inteligentes, mas raramente são pensadores criativos. Além disso, os médicos americanos, bem como os austríacos, tentam apropriar-se do campo. Deixar que a psicanálise permaneça somente nas mãos dos médicos será fatal para o seu desenvolvimento A formação médica pode ser tanto uma vantagem quanto uma desvantagem para o psicanalista. Ela é uma desvantagem quando certas convenções científicas aceitas se tornam arraigadas demais na mente do estudante.

(Freud precisa dizer a verdade a todo custo! Não consegue se forçar a lisonjear os Estados Unidos, onde tem a maioria dos seus admiradores. Não consegue, mesmo estando em desvantagem, fazer as pazes com a profissão médica, que até hoje o aceita com grande relutância. Apesar da sua integridade inflexível, Freud é muito cortês. Ele ouve qualquer sugestão com paciência, sem jamais tentar intimidar o entrevistador. É raro um convidado partir sem algum presente, uma lembrança da sua hospitalidade! A noite chegara. Estava na hora de pegar o trem de volta para a cidade que um dia abrigara o esplendor imperial dos Habsburgos. Freud, acompanhado pela esposa e pela filha, subiu a escada que ligava o seu retiro nas montanhas à rua, para se despedir de mim. Ele me pareceu triste e sombrio, quando acenou para mim.)

Sigmund Freud — Não me faça parecer um pessimista — (comentou depois do último aperto de mão) — Eu não desprezo o mundo. Expressar insatisfação para com o mundo é só uma outra maneira de cortejá-lo, para conseguir plateia e aplausos! Eu não sou um pessimista, não enquanto tiver meus filhos, minha mulher e minhas flores! As flores felizmente não têm personalidade ou complexidades. Adoro as minhas flores. E não sou infeliz — pelo menos, não mais do que outras pessoas.

 

(O apito do meu trem soou na noite. O carro me levou à estação com rapidez. Aos poucos, a figura levemente curvada e a cabeça grisalha de Sigmund Freud desapareceram ao longe. Como Édipo, Freud olhou fundo nos olhos da Esfinge. O monstro propõe seu enigma para qualquer viajante. O andarilho que não souber a resposta será cruelmente agarrado e atirado contra as rochas. Mesmo assim, ela talvez seja mais gentil com aqueles que destrói do que com os que adivinham seu segredo.)

Fonte indicada: Revista Bula- entrevistas






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