Como brincar com a agressividade e a violência ajuda a criança a lidar com a realidade

Por Amanda Mont’Alvão Veloso

Em um mundo em que a violência se manifesta com variadas formas e intensidades – assassinatos, torturas, agressões físicas e verbais, sequestros, privações, ameaças, intimidações, aprisionamentos e punições –, as crianças certamente são afetadas, seja direta ou indiretamente.

E antes mesmo que elas tivessem contato com as brutalidades do homem contra o homem, elas já precisavam lidar com a agressividade existente em seus mundos internos.

Revólveres de brinquedo, espadas de plástico, lutinhas, guerras, dominação, enredos trágicos: Não são raras as situações em que estes são o material utilizado por crianças para tentar entender o mundo e o comportamento dos adultos. Quando ainda não se tem palavras para traduzir os sentimentos, o lúdico é um excelente comunicador. A dramatização da violência pode ser assustadora para alguns pais e educadores, mas ela tem uma função muito importante no processo de desenvolvimento de uma pessoa.

“A agressividade é uma das questões primordiais com que o ser humano tem de lidar”, explica a psicanalista Monica Seincman, coordenadora do Núcleo de Psicanálise com Crianças do Centro de Estudos Psicanalíticos (CEP).

Segundo a especialista, as brincadeiras são fundamentais para ajudar a criança a assimilar a realidade. “O brincar é um espaço de elaboração e nele podem acontecer coisas que não podem na ‘vida de verdade'”, explica.

“Quando se brinca de bola, de pega-pega, polícia e ladrão; ou quando se contam ou se encenam histórias ou contos de fada; ou ao jogar games e as situações que eles propõem, as crianças, os adolescentes e inclusive os adultos têm a oportunidade de experimentar e elaborar, entre outras questões, a agressividade e a violência. Cada um de sua forma e com os instrumentos que lhes são próprios, conforme seus interesses e possibilidades de maturidade. Com isso, tornam-se mais capazes de se conter fora da ‘vida do faz de conta’.”

Seincman reforça que a agressividade e a violência são impulsos humanos que devemos controlar e, algumas vezes, suprimir no âmbito social. Mas isso não acontece naturalmente.

“É um trabalho ao qual a criança se submete tendo como referência as outras pessoas que a rodeiam – adultos e crianças.”

Uma “fechada” no trânsito que se transforma em uma briga física é um exemplo de como a agressividade deveria ter sido suprimida. O controle na vida real pode ser adquirido na brincadeira e nos games:

“Os games propõem situações e possibilidades que estão presentes em nossa fantasia, mas que não podem ser colocadas em ação no dia a dia. O que acontece nestes momentos não faz parte da realidade; no máximo, a simula. Portanto, não traz as consequências que os mesmos atos trariam fora do mundo virtual. A destruição causada não é definitiva, os mortos não constituem perdas efetivas. A cada fase sempre surgem novas possibilidades, personagens e cenários a serem aniquilados.”

Brincadeiras infantis e contos de fada podem ser veículos para se descarregar a raiva e as frustrações da criança, permitindo que ela viva, na fantasia, aquilo que não pode viver na realidade.

“‘De mentirinha’ podemos dizer e fazer coisas impensáveis na ‘vida de verdade’. É somente no brincar que podemos expressar o que devemos recalcar nos outros momentos”, lembra Seincman.

Pesquisas também apontam para os benefícios dos games e brincadeiras: Uma pesquisa da Universidade de Oxford constatou que jogos violentos não são responsáveis por estimular esse tipo de comportamento nas crianças. O estudo, realizado com cerca de 200 alunos do ensino fundamental de uma escola inglesa, foi divulgado em 2015.

Já uma pesquisa americana observou os efeitos de jogos violentos em 377 americanos, de idade média de 13 anos, que tinham sintomas depressivos ou aumento no déficit de atenção. O resultado mostrou que os games não aumentaram o comportamento agressivo dos jovens e teve um efeito calmante em alguns deles, ajudando a reduzir o comportamento provocador de bullying.

O psicólogo e psicanalista Eduardo Sá, autor de O Ministério das Crianças Adverte: Brincar Faz Bem à Saúde (Casa da Palavra, 2016), destaca em seu livro a importância das narrativas infantis para se entender elementos da vida real, como a maldade:

“As histórias sensibilizam-nas para ver o mundo e as pessoas, ensinam-nas a conhecer a vida com inteligência e bondade. Falam-lhes de bruxas ou de duendes e ajudam-nas a compreender a maldade. E a entender que essa maldade não vem nem de Marte, nem do Inferno, mas de pessoas muito parecidas com todas as que andam por aí.”

A fronteira entre o real e o virtual é o que define o perigo de uma brincadeira ou de um jogo. A diferença entre eles deve ser sempre preservada para que os limites sejam observados, ressalta Seincman. Este é o grande desafio para pais e educadores:

“A realidade não pode desaparecer no virtual, e o virtual não pode substituir a realidade. O virtual, o ‘de brincadeira’, deve necessariamente ser um campo distinto, e claramente diferenciado, do ‘de verdade’. Assim, no virtual se pode elaborar aquilo que, na realidade, deve ser suprimido pelo bem da existência de uma coletividade.”

Diante da tela do computador, do tablet ou do celular, adolescentes chegam a passar horas no mundo virtual, para grande angústia dos pais. Mas a situação fica ainda preocupante quando, na rede, alguns jovens chegam a estabelecer uma vida paralela, cultivando, inclusive, valores e comportamentos bastante opostos ao da vida real. Para Seincman, o assunto evoca os limites existentes na vida em sociedade, impostos para que haja convivência.

“A vida paralela aparece quando o brincar ou o virtual viram realidade e não temos mais barreiras e proibições a serem respeitadas. Há uma subversão na ordem e uma ruptura com a realidade compartilhada com os outros. No mundo virtual ‘real’ podemos morrer e ressuscitar, matar e continuar a ter o objeto. Não há perda.”

A ideia de que não haja uma perda é ilusória, segundo Freud. Para viver em sociedade, é necessário que o ser humano renuncie ao prazer pessoal em diversos momentos; ou seja, é preciso perder para conviver. Porém, renunciar ao prazer pessoal – não podemos fazer tudo o que queremos – é um difícil processo, e esta dificuldade tem se acentuado, destaca Seincman.

Em paralelo a esta renúncia obrigatória e à discussão sobre a influência de jogos violentos em crianças e adolescentes, existe uma indústria bastante interessada em mostrar graficamente a violência, tanto em produtos de entretenimento quanto em notícias. Dentro deste contexto, a morte é explorada com sensacionalismo é até mesmo glamour.

“Com o passar do tempo, este processo [renúncia do prazer pessoal] é cada vez mais penoso, custoso. A glamourização da morte na web fala de como a sociedade de consumo e sua indústria do entretenimento paradoxalmente precisam de pessoas que insistam em não renunciar a nada, que se submetam apenas ao seu imperativo de ter prazer sem pensar no que isto custa no âmbito social.”

Imagem de capa: Shutterstock/ZoranOrcik

TEXTO ORIGINAL DE BRASILPOST






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