Como falar sobre a finitude da vida com crianças: especialista explica como apoiar os pequenos diante da perda de um ente querido

A finitude é um tema universal, mas a maneira como lidamos com uma vida que se encerra envolve questões individuais como experiências pessoais e espiritualidade até temas mais amplos como o viés cultural.

Segundo a pesquisa “Cartografia da Morte”, o tema da morte é um tabu para mais de 73% dos brasileiros. O estudo raro e inédito foi feito em 2018, encomendado pelo Sindicato dos Cemitérios e Crematórios Particulares do Brasil (Sincep) e constatou que os brasileiros têm uma dificuldade muito grande para falar e debater sobre assuntos relacionados com a finitude da vida.

Segundo o levantamento, apenas 21% dos jovens do país discutem o assunto, número que sobe somente para 32,5% no recorte de adultos com 55 anos ou mais.

A pesquisa também descobriu que quase 50% da população considera falar sobre morte uma questão depressiva, enquanto 27,8% consideram o assunto “mórbido”. Para mais de 30%, morte é algo solitário e não deve ser dividido.

A Cartografia da Morte revelou ainda que 82,4% dos brasileiros consideram que não há nada mais sofrido que a dor da perda de alguém, mas que mesmo assim o tema é evitado por questões de crenças. Cerca de 10% dos entrevistados disseram acreditar que abordar o assunto pode acabar o atraindo, enquanto outros 30,4% não sabem nem como e nem com quem discutir.

Como todo este cenário, não é de se surpreender que as crianças sofram com dificuldades geradas pela ausência de diálogo sobre a finitude da vida. Afinal, o sofrimento causado pela morte também afeta os menores.

“É essencial termos em mente que devemos pensar na perda enfrentada pelas crianças sempre como algo delicado e digno de atenção. Elas também precisam de apoio e a figura dos pais ou responsáveis representam essa segurança para que elas lidem com a perda”, afirma Camila Capel, criadora do modelo de Parentalidade Essencial e pesquisadora de antroposofia e abordagens sobre finitude com as crianças.

Camila também é autora do livro “A mala do Opa”, que narra de forma profunda, acessível, poética e inspiradora a história de Helena, filha dela, ao vivenciar a morte do avô paterno (Opa, em alemão). A narrativa ajuda as crianças a entenderem que a morte, independente de religião, é um momento de passagem.

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A importância de falar sobre a morte com crianças

Camila comenta que, antes de entender como é importante abordar o tema morte com os pequenos, os pais precisam compreender que são seres humanos desempenhando múltiplos papeis na vida, sendo, apenas mais um deles, a parentalidade. A partir dessa compreensão, os adultos podem mostrar para as crianças que, mesmo sendo pais, são seres com distintas emoções e que cada papel é importante na sua formação como ser integral; isso facilitará o desenvolvimento da inteligência emocional e espiritual dos menores.

A especialista salienta que lidar com naturalidade sobre a morte ajuda a criança a lidar com angústias que fazem parte da formação humana; os medos de separação e perda dos progenitores, por exemplo, são temas naturais em alguns momentos do desenvolvimento infantil, como por volta dos nove anos, o início da pré adolescência. Nessa fase, a criança vive, de certa forma, uma “pequena morte”, ao deixar para trás uma fase da sua infância. Lidar com temas tabu ajudam a  criança a construir novas imagens sobre o que é morrer, o que gera medo natural, mas também carrega a passagem para algo novo. Essa formação mais ampliada sobre as temáticas humanas faz com que aquela criança possa, no futuro, ter mais consciência sobre seu desenvolvimento e, assim, ser um agente de transformação para uma sociedade mais pacífica e consciente.

“Estimular nos adultos essa reflexão sobre a criança que eles também foram, ajudam-nos a compreender sua próprias crenças e valores que regem suas vidas hoje. Somente assim, poderão assumir a responsabilidade de seus papeis nas relações com seus próprios filhos”, explica.

Para Camila Capel, o processo de lidar com a morte deve incluir o espaço para a escuta, presença, gestos e a memória. Os responsáveis devem mostrar para as crianças que é permitido falar e lembrar de quem já morreu. “Muitas pessoas desestimulam os filhos a comentarem sobre parentes ou conhecidos falecidos, porque o tema é tabu entre os próprios adultos. Este espaço de silêncio não só gera receio nos menores, que percebem o quanto o assunto desestabiliza os mais velhos, quanto cria uma barreira que pode alimentar a sensação de que aquele que se foi seja esquecido”, diz.

“Para quebrar esse impedimento, é possível mostrar para a criança que o indivíduo se foi na forma física, mas continua existindo nos nossos corações, o que pode trazer alívio para as crianças”, complementa.

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Uma morte pode traumatizar uma criança?

A temática da morte tem diferentes impactos em um adulto e em uma criança. A especialista em Parentalidade Essencial explica que, no caso dos pequenos, a dor da perda é, muitas vezes, um reflexo do medo do desconhecido, que é potencializado também pela dificuldade dos pais de entender e absorver o acontecido.

Camila pontua que, inconscientemente, é muito comum que adultos transfiram o entendimento sombrio sobre o fim da vida para os filhos. Essas condições e outras podem gerar traumas nas crianças. Contudo, ela faz questão de ressaltar que o trauma não é criado pelo fato em si, mas sim pelo fato de ficarmos sozinhos com as emoções difíceis, ou seja, a forma com que os pais lidam será preponderante para a instalação de um trauma, mesmo em casos mais difíceis.

Segundo o autor e médico húngaro-canadense Gabor Maté, referência citada no modelo de Parentalidade Essencial para conceituar trauma e sua correlação com o desenvolvimento infantil, o “trauma desconecta o indivíduo do ser, desconectamos quando é um muito doloroso ser nós mesmos”.

Para a psicoterapeuta especializada em trauma Sunita Pattani, existem ao menos dois timos de trauma, o trauma com “T” maiúsculo e “t” minúsculo”. Enquanto o primeiro é gerado por violências como abuso, agressões e perdas repentinas, o segundo corresponde a situações frequentes ou eventos marcantes de aparente baixa intensidade, mas que causam profundos impactos emocionais.

Camila explica que mais relevante que o trauma em si, é como o nosso sistema nervoso responde. Permitir que a carga emocional se dissipe é fundamental para a criação de um circuito neuronal de trauma. “Um trauma gera sensações como dor, sofrimento e energia não dissipada, todos processos que uma criança pode, efetivamente, passar em uma situação de perda. Precisamos nos conscientizar de como a dor é um dos componentes do processo traumático e o quanto é essencial não apenas acolher à criança, como permitir que ela expresse esta estagnação energética e isso pode vir na forma de descargas emocionais, ataques de raiva, tremores, espasmos. É o corpo tentando colocar para fora o turbilhão interior”, explica.

Antes mesmo de iniciar a conversa sobre a finitude, a especialista destaca a importância de que os adultos se preparem cuidando de si próprios, buscando oportunidades de expressarem suas próprias dores. A ideia é ter alguém que possa oferecer um abraço e conforto, já que é a partir daí que estaremos preparados, inteiros e disponíveis para as demandas emocionais das crianças.

 

Como abordar o tema da finitude com crianças de diferentes idades?

Assim como percebemos e vivenciamos o mundo de maneiras diferentes em cada etapa da vida, a forma como abordamos questões-chave da nossa existência também exige diferentes abordagens.

De acordo com a filosofia antroposófica, que é a base da pedagogia Waldorf e do modelo de Parentalidade Essencial, é importante conceituar o crescimento a partir da ideia de setênios, que compreendem a evolução da vida a partir de períodos de sete anos.

“Entendemos todos os seres humanos precisam de 3 setênios para alcançar a autoconsciência e que cada setênio representa uma fase da criança do ponto de vista físico, emocional e espiritual, e que pedem abordagens diferentes”. Para auxiliar pais e cuidadores, Camila traz um guia de como lidar com a questão da morte nos dois primeiros setênios do desenvolvimento humano:

  • Até 07 anos de idade (primeiro setênio): os pais não precisam falar explicitamente sobre morte com as crianças porque elas ainda não elaboraram as perguntas certas. Uma boa atitude dos adultos é passar um tempo a mais com a criança, dar um passeio ou ficar mais tempo acompanhando a hora de dormir.

 

Se a criança consegue verbalizar a falta, é possível levar a atenção da criança aos momentos bons que passou com a pessoa querida e pedir sugestões de coisas que podem fazer para manter aquela memória viva dentro do coração.

Nos primeiros 3 anos, a criança pouco percebe diferença entre vida e morte e transita entre estes mundos. Nesta idade os pais podem trazer o contorno da natureza para falarem de começos e fins e falar a partir de metáforas e alegorias. Um exemplo é citar as estações do ano: como a primavera traz a vida, já que vemos o florescer. O inverno, experienciado pelos galhos secos, fala de morte não um fim, mas uma pausa onde a natureza se recolhe em si para voltar mais forte na próxima estação, por exemplo.

O período em que dormimos pode ser uma oportunidade para demonstrar como a vida é o intervalo entre os dois ciclos. Se ao dormir, desconectamos, quando acordamos todas as manhãs estamos cheios de vida em recomeços diários.

 

No corpo, percebemos que estamos sempre renovando e vendo nascer e crescer: unhas, cabelos e pelos… exemplos de como a vida é cíclica.

 

  • Dos 07 aos 14 anos de idade (segundo setênio): já chegando na fase da adolescência, os menores estão vivendo uma crise de sentimentos natural da idade. Os dilemas desse período fazem com que a perda tenha um impacto sobre seu universo das emoções, fazendo com que se sintam mais tristes, melancólicos ou agressivos. Talvez alguns queiram conversar, outros ficam mais retraídos, e não há nada de errado, antes de julgar ser um problema ou um trauma instalado, é preciso perceber o temperamento de cada criança individualmente.
  • Dos 14 aos 21 anos de idade ( terceiro setênio): nesta idade, o jovem vive um momento de emancipação e afastar-se dos pais é um movimento bastante natural. Para os pais, é preciso saber transitar entre o acolhimento e o espaço da individualidade. Portas fechadas não são, necessariamente, sinal de depressão, talvez ele apenas precise que batam na porta antes de entrar pois não querem que o vejam chorando e está tudo certo. Com a idade, a tônica do temperamento fica mais evidente e você já saberá se eu filho é mais expansivo ou introspectivo; esse será o balizador para saber se ele está lidando bem com a perda ou não. E se conversar já é um jeito de ser dele, será mais natural que ele expresse em falas, caso nunca tenha sido, talvez essa expressão virá no corpo, com sinais de irritação, agressividade, impaciência e raiva. Acolha o que vier, verbal ou fisicamente como forma de expressão e não como ofensas pessoais. Ainda caberá aos pais mostrar os limites onde esta expressão possa ocorrer, mas a autoridade pode ser oferecida com empatia e amorosidade.

“Em qualquer setênio é preciso abertura para saber escutar o que a criança ‘não diz’, isso acontece quando nos colocamos em estado de presença na relação parental e permanecemos abertos para escutar o que o coração delas nos diz. Aliás, esse é o exercício diário da parentalidade. E é natural que os pais, ainda mais se estão, também, em sofrimento por causa da perda, sintam-se desconfortáveis em ser esta figura. Nestes casos, amigos ou parentes podem cumprir esse papel, que também pode ser delegado a um profissional em casos de maior preocupação”, explica.

O entendimento sobre a morte é complexo, assim como é o entendimento sobre a vida. Portanto, é importante que os adultos privilegiem levar tranquilidade para as crianças e jovens quando há a partida de alguém próximo. Tranquilidade pode vir na forma como acolhemos nossos filhos em sua dor.

Camila define que acolher a criança é estar de forma inteira e ser verdadeiro, validar o que os filhos expressam em fala, gestos, atitudes e ser compreensivo com comportamentos diferentes do comum, suportar uma crise de raiva, birra ou mal humor, neste caso, significa ser empático.

“Perder alguém que amamos quando não temos capacidade de interpretar o momento pode dar raiva, frustração e até mesmo sensação de abandonado pela pessoa que partiu. Por isso, o adulto falar sobre os próprios sentimentos e impotências diante da perda são formas de auto validação que autorizam a criança a também sentir coisas ruins dentro dela. Caso não exista este espaço, ela pode não expressar seus sentimentos por achar que existe algo errado ou que falar pode trazer mais dor à família”, diz.

“As crianças vão assimilar o que os adultos têm a oferecer, e se dentro deles mora medos e incertezas sobre a morte, é isso que os mais velhos irão comunicar. O caminho é ser honesto consigo mesmo e dizer para os pequenos que sentimos medos, mas mostrar que apesar do medo, seguiremos em frente e buscaremos formas de fazer aquele que partiu permanecer vivo dentro de nós. Construir com a criança significados novos é também um exercício muito valioso e ouvi-los sobre sugestões de manter a memória do ente querido viva na família pode construir novas narrativas, inclusive para quem não é mais criança”, finaliza Camila.

 

Sobre Camila Capel

Camila Capel é idealizadora do modelo de Parentalidade Essencial, uma visão científico-espiritual do ser humano.

Tem uma formação multidisciplinar em áreas como Parentalidade; Treinamento de Habilidades Parentais; Inteligência Emocional; Escuta Terapêutica; Educação de Pais e Autoeducação.

É instrutora de Mindfulness and Compassion, especialista em CBT – Terapia Cognitivo Comportamental, Psych-k, Programação Neurolinguística, e técnicas de comunicação e mediação.

Sua visão sistêmica sobre “ser humano” é base para sua atuação como escritora, com o objetivo de compartilhar aprendizados e experiências para inspirar pessoas a trilharem o caminho do autoconhecimento, para uma vida mais plena.

 

Acesse:

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