Como um grande escritor usou literatura para superar fortes dores de cabeça

Por Moacyr Scliar

Enxaqueca, aquela dor de cabeça latejante que frequentemente é sentida em um lado só da cabeça (a hemicrania, de onde vem o termo migraine) é um problema comum. Só nos Estados Unidos afeta cerca de 28 milhões de pessoas, por isto que, em cerca da metade dos casos, o diagnóstico não é feito. Discute-se muito se a enxaqueca corresponde a um perfil psicológico característico. Comenta-se que essas pessoas em geral são perfeccionistas, com uma tendência a internalizar problemas e propensão ao stress.

Muitos autores classifi cam essa afirmação como uma generalização temerária, mas um trabalho realizado na Universidade Philipps Marburg, na Alemanha, mostrou com números que a enxaqueca se acompanha de melancolia, desamparo e sentimento de culpa – ou seja, traços depressivos. Essas linhas são encontradas, também, com frequência entre escritores, muitos dos quais sofreram, ou teriam sofrido (às vezes o diagnóstico retrospectivo é difícil) de enxaqueca.

Alguns exemplos: Miguel de Cervantes, Virginia Woolf, e o próprio Sigmund Freud. Mas nenhum destes casos é tão famoso quanto o do escritor inglês Charles Lutwidge Dodgson (1832-1898), mais conhecido pelo pseudônimo de Lewis Carroll, autor dos famosos Alice no País das Maravilhas (Alice in Wonderland) e Alice no País do Espelho (Through the Looking Glass and What Alice Found There). No caso dele o diagnóstico de enxaqueca é mais ou menos pacífico; a dor era intensa, a ponto de levá-lo a usar láudano – uma tintura de ópio –, mas nada indica que fosse dependente. Agora: qual a relação da enxaqueca com a literatura de Lewis Carroll, ou com a elaboração ficcional?

A resposta está numa palavra: aura. Este é o estado que antecede o ataque de enxaqueca, e que em geral se caracteriza por fenômenos visuais de tipo alucinatório, luzes, fi guras, linhas móveis. O conhecido neurologista e escritor Oliver Sacks descreve assim seu primeiro ataque de enxaqueca, ocorrido na infância: “Eu estava brincando no jardim, quando uma luz brilhante, tão ofuscante como o sol, surgiu diante de mim, expandiu-se, formando um enorme semicírculo da terra para o céu, movendo-se em ziguezague. Eu estava aterrorizado. Foram os minutos mais longos de minha vida”.

Lewis Carroll registrou em diário suas alucinações visuais, que eram, como acontece na enxaqueca, seguidas de forte dor de cabeça. Por causa disso chegou a consultar um oftalmologista, que nada encontrou de errado em seus olhos, mas lhe recomendou ler menos (o que não é exatamente um bom conselho para um escritor). Por outro lado, situações alucinatórias não faltam nas aventuras de Alice. Ela aumenta ou diminui
de tamanho, vê um gato sorridente que de repente fica reduzido só ao sorriso. Por causa disso usa-se a expressão “síndrome de Alice no país das maravilhas”, cunhada pelo médico inglês John Todd em 1954, para descrever as alucinações visuais que precedem a enxaqueca, e que podem ocorrer também sem dor de cabeça.

Virginia Woolf diz que “o idioma inglês, que pode expressar tão bem os pensamentos de Hamlet e a tragédia do rei Lear, não tem palavras adequadas para a enxaqueca. Se alguém tiver de descrever essa dor para o médico, logo constatará que as palavras lhe faltam”. Talvez tenham faltado também a Lewis Carroll; talvez por isso ele tenha recorrido a uma imaginosa fi cção.

De seu sofrimento e de sua perplexidade brotou uma literatura que nos encanta e que até hoje inspira artistas. O excêntrico e imaginoso diretor americano Tim Burton acaba de concluir uma versão cinematográfica da obra, com Johnny Depp, Anne Hathaway e Helena Bonham Carter nos papéis principais. Pode ter sido uma dor de cabeça (ou enxaqueca?) adaptar um livro tão inusitado para as telas, mas certamente será para nós, espectadores, uma experiência no mínimo curiosa e talvez até arrebatadora.

Imagem de capa: Shutterstock/Varlamova Lydmila

TEXTO ORIGINAL DE MENTE E CÉREBRO






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