Começa com uma pergunta incômoda: quem decide o que é “cuidado” quando uma mulher idosa segue vivendo do próprio jeito? 27 Noites, dirigido por Daniel Hendler, entra nesse terreno ao acompanhar Martha Hoffman, octogenária, colecionadora de arte e obstinada, que vê a rotina virar objeto de disputa familiar e judicial após ser internada sem consentimento em uma clínica psiquiátrica.
O caso chega às mãos do perito Dr. Elias, cuja avaliação técnica também expõe seus limites pessoais.
No enredo, o conflito não é só entre mãe e filhas: é entre interpretações de autonomia. A família lê excentricidade como risco; o sistema jurídico busca respostas rápidas; o perito tenta decantar fatos de emoções.

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As sessões de avaliação desvelam memórias, manias, desejos antigos e um cansaço moderno com o controle alheio. Tudo filmado sem pirotecnia, priorizando gestos, silêncios e entrelinhas.
Sai a sinopse, entra a ficha: roteiro assinado por Hendler, Mariano Llinás e Martín Mauregui; 105 minutos de drama psicológico que aposta em atuações de baixa voltagem e alta precisão.
A montagem conduz o espectador por um labirinto de pequenas decisões — médicas, jurídicas e afetivas — que acumulam consequências.
Vem a pergunta que muita gente faz ao sair da sessão: tem história real por trás? Tem, com liberdade artística. O longa dialoga com o livro “27 Noches”, de Natalia Zito, inspirado em episódios da vida da intelectual e filantropa Natalia Kohen (1919–2022).

Viúva de Mauricio Kohen, ligado ao setor farmacêutico e à Fundación Argentia, ela ganhou destaque no cenário cultural de Mendoza e Buenos Aires, e travou, aos 86 anos, uma batalha pública e doméstica pela própria autodeterminação.
A origem do título salta aos olhos: foram 27 noites de internação involuntária em 2005, em meio a um impasse familiar sobre investimentos em um centro de arte local. A partir daí, multiplicaram-se laudos, contralaudos, entrevistas e reportagens.
O debate saiu do privado e ganhou redações, auditórios e tribunais: até onde vai o zelo das filhas? Qual o papel do médico ao atestar capacidade? O que o Judiciário entende por “proteção” quando a pessoa discorda do “protegido”?
Passando a lupa no caso real, surgem pontos delicados. Relatórios médicos foram contestados, diagnósticos receberam revisões e decisões judiciais oscilaram entre declarar inexistente uma demência específica e, depois, reconhecer síndrome psicoorgânica com curatela para questões patrimoniais.

A controvérsia não apagou a figura pública de Kohen, que seguiu vinculada a projetos culturais e, anos depois, buscou recompor laços com a família.
O filme não reencena cada linha desse processo, mas captura aquilo que o caso expôs: como medicina, direito e afetos se atravessam quando alguém vive “fora do script” esperado para a velhice.
Entre um exame e outro, o drama encara temas como internação involuntária, capacidade civil, conflito de interesses em heranças, ética médica e direitos de decisão sobre corpo, casa e dinheiro.
No encontro entre a Martha ficcional e a trajetória de Natalia Kohen, 27 Noites organiza um retrato incômodo e necessário: o de uma vida que, perto do fim, ainda reivindica o direito de escolher o próprio ritmo — e de contestar quem tenta acelerar ou frear por ela.
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