Estudos mostram que pessoas com transtornos mentais cometem menos crimes do que as ditas normais

Por Paloma Oliveto

Eles nascem duplamente condenados. Além de terem que conviver com as dificuldades da loucura — vozes, inquietações e debilidades que, muitas vezes, os acompanham por toda a vida —, vêm ao mundo sob o estigma da maldade. Doentes mentais são violentos e cruéis, diz a crença popular. Cada vez que um ataque é protagonizado por alguém com diagnóstico de insanidade, reforça-se a convicção de que a criminalidade anda lado a lado com esses pacientes.

Psicólogos, psiquiatras e cientistas criminais insistem, porém, que não há qualquer relação entre loucura e violência. Diversos estudos têm demonstrado que, ao contrário, pessoas com transtornos mentais cometem menos delitos que o restante da população. Uma pesquisa em fase inicial da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) constatou, até agora, que a reincidência de indivíduos com demência é de 7%, contra 70% dos ditos normais. No caso de homicídios, esse percentual é ainda mais baixo, segundo um levantamento encomendado, em 2011, pelo Ministério da Justiça: 1%.

Cena do filme ‘As duas faces de um crime’, de Gregory Hoblit. Na imagem, o jovem de 19 anos Aaron Stampler (Edward Norton) – acusado de assassinar um arcebispo com 78 facadas e que sofreria de dupla personalidade – conversa com o advogado de defesa interpretado por Richard Gere (Reprodução Internet)
Cena do filme ‘As duas faces de um crime’, de Gregory Hoblit. Na imagem, o jovem de 19 anos Aaron Stampler (Edward Norton) – acusado de assassinar um arcebispo com 78 facadas e que sofreria de dupla personalidade – conversa com o advogado de defesa.
Agora, pesquisadores americanos utilizaram uma abordagem diferente para dissociar a insanidade da criminalidade. Os cientistas analisaram a relação entre os sintomas de três importantes doenças mentais com a execução de delitos. Eles estudaram 429 crimes cometidos por 143 pacientes diagnosticados com depressão, esquizofrenia e distúrbio bipolar e constataram que em apenas 7,5% dos casos as transgressões estavam ligadas a essas doenças. Por exemplo, somente 4% dos esquizofrênicos que perpetraram delitos foram influenciados por vozes em suas cabeças ou outros sintomas da enfermidade.

“Nosso primeiro objetivo era examinar a frequência da relação dos sintomas com os crimes. Não apenas alucinações, mas impulsividade, raiva, falta de esperança, tristeza profunda. Definimos como crime direto aquele no qual o sintoma precedeu imediatamente o delito e aumentou a probabilidade de sua ocorrência”, descreve Jillian Peterson, psicóloga da Normandale Community College de Bloomington e principal autora do estudo, publicado pelo jornal da Associação Americana de Psicologia.

Ela conta que levantamentos anteriores haviam indicado que as psicoses — amplo quadro associado à perda da realidade — estavam por trás de 4% a 5% do comportamento criminal. “De uma perspectiva das políticas públicas, é importante saber se programas para condenados com doenças mentais deveriam focar os sintomas psicóticos como medida corretiva”, justifica.

Foram realizadas entrevistas com os detentos e, além disso, os pesquisadores fizeram uma revisão de sua história criminal e social. Com base na combinação dos resultados, eles estabeleceram três categorias: nenhuma relação entre os sintomas da doença mental e o crime, muita relação e relação direta. “Levamos em consideração a contribuição dos sintomas na causa do crime, ainda que eles não tenham sido 100% responsáveis. Por exemplo, se um indivíduo com esquizofrenia estava agitado por ter ouvido vozes no início do dia e, no fim da tarde, se envolveu numa briga de bar, mesmo que não estivesse mais ouvindo essas vozes naquele momento, categorizamos o crime como muito relacionado”, diz.

Pesquisadores americanos utilizaram uma abordagem diferente para dissociar a insanidade da criminalidade

Fatores sociais
Quando combinadas as categorias de muita relação e relação direta, o percentual de crimes atribuídos aos sintomas das doenças mentais passou para 18%. Ainda assim, um índice baixo: menos de um em cinco delitos estudados na pesquisa.

Daqueles cometidos por participantes com distúrbio bipolar, 62% tinham muita ou total relação, comparado com 23% no caso de esquizofrenia e 15% nos pacientes depressivos. Pesquisadora de Lei e Comportamento Humano da Universidade de Columbia e coautora do estudo, Andrea Zvonkovic esclarece que, na maior parte das vezes, os delitos foram perpetrados pelos mesmos motivos que levam cidadãos mentalmente saudáveis a executá-los.

“Por trás dos crimes que investigamos, estavam razões como pobreza, desemprego, falta de um teto, abuso de substâncias químicas… Não é diferente dos fatores que geralmente estão por trás do cometimento de crimes em geral”, descreve.

Para Jillian Peterson, a mídia é a principal responsável por reforçar o estigma da loucura como motor da violência. “Quando uma pessoa com uma doença qualquer, como diabetes, por exemplo, comete um crime, as notícias não vão nem citar a condição médica desse indivíduo. Mas, se o delito é cometido por um doente mental, isso vai ser destacado na manchete”, critica. “O que se tem evidenciado em estudos, incluindo o nosso, é que doentes mentais não são mais perigosos ou violentos que ninguém.”

Na realidade, ocorre o contrário, diz Seena Fazel, psiquiatra forense do Instituto Karolinska, na Suécia, que liderou uma pesquisa comparando o percentual de crimes cometidos por doentes mentais e por pessoas saudáveis. Ele explica que o país mantém dados atualizados da população que sofre de demências, o que facilita esse paralelo. Depois de estudar registros dos últimos 13 anos, o pesquisador constatou que, na nação nórdica, os doentes mentais são responsáveis por um em cada 20 delitos violentos. “Somente 18% dos homicídios ou das tentativas de assassinato foram cometidos por pacientes com esses distúrbios”, observa. “Muitas pessoas acham que aquelas com sérios problemas psiquiátricos contribuem significativamente para a quantidade de crimes violentos. Elas podem se surpreender ao ver que 19 de 20 criminosos que cometem esses delitos não têm qualquer problema mental”, diz.

ARTIGO

Crime e doente mental: uma revisão de conceitos
De acordo com Fazel, outros estudos indicam que ter uma doença mental, na realidade, aumenta o risco de o indivíduo ser vítima — e não autor — de atos violentos. “Não há sentido para o preconceito que essas pessoas sofrem. Dizer que são perigosas é errado e injusto. Já passou da hora de parar com esse tipo de discriminação. Preconceitos assim dificultam ainda mais a vida dos pacientes, impedindo que eles tenham uma vida normal dentro da nossa sociedade”, afirma.

Quando se fala em criminalidade, acredita-se que o doente mental representa mais perigo para a sociedade, mas isso não se aplica. Como coordenadora da pesquisa Observatório da Medida de Segurança na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em conjunto com o professor César Augusto Rodrigues da Costa, temos percebido, através de dados, ainda preliminares, que a maioria dos crimes cometidos são realizados por pessoas que não têm doença mental.

No momento, estudamos aproximadamente 700 pessoas que foram liberadas entre os anos 2000 e 2013 de um hospital de custódia e tratamento psiquiátrico no Rio de Janeiro. Nossa pesquisa aponta, em fase inicial, que a reincidência do doente mental é em torno de 7%, e do não doente, 70%. O que acontece é que uma minoria comete o crime, mas tem grande visibilidade da mídia, o que reforça o estigma contra o doente mental.

É necessário saber que a maior parte dos homicídios é cometida por pessoas que fazem uso de álcool e outras drogas — que é uma perturbação mental, mas não é considerada uma doença. Trata-se de um transtorno de personalidade antissocial. No caso de crime contra a própria família, a maioria dos doentes mentais também não são os agentes, mas quando isso ocorre, causa muita comoção, por isso, as pessoas acreditam que o doente mental representa mais risco.

É de conhecimento que até o julgamento, alguns acusados usam do artifício da doença mental, mas deve-se entender que a psiquiatria forense age de forma decisiva para certificar a doença. Fazemos uma avaliação direta, com exame pericial, no qual é lavada em consideração toda a documentação da pessoa, que influi em fatores biográficos — a relação de trabalho, estudo, a vida amorosa, bem como o relacionamento familiar. Simular doença mental para ser beneficiado na sentença é tarefa difícil. Somos capacitados para uma avaliação precisa e percebemos com clareza a falta de coerência das declarações prestadas pelo indivíduo. Quanto ao preconceito enraizado sobre os doentes mentais, sou a favor de medidas restritivas, com ações que visem proteger essas pessoas, que estão esclusas da sociedade.

Kátia Mecler é psiquiatra forense, diretora do Instituto de Perícia Heitor Carrilho (RJ) e coordenadora do Departamento de Ética e Psiquiatria Legal da Associação Psiquiátrica do Estado do Rio de Janeiro (Aperj)

Na foto da capa, Jhon Nash, que possuía esquizofrenia, foi prêmio Nobel de Economia.

TEXTO ORIGINAL DE UAI






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