Nise da Silveira: Jung, Freud e as mandalas

Por Laís Modelli

No final da década de 1950, ao ser transferida para o Setor de Terapia Ocupacional (STOR) do Hospital Pedro II, no bairro carioca do Engenho de Dentro, o lugar de menor prestígio da instituição, a psiquiatra Nise da Silveira inaugura um ateliê de pintura e modelagem como parte do tratamento desenvolvido por ela para esquizofrênicos. Para entender os desenhos feitos por seus pacientes, Nise procura explicações na obra do psicoterapeuta suíço Carl G. Jung e inicia, neste momento, uma relação profissional que duraria até 1961, ano da morte de Jung.

“Ao desenvolver, inicialmente, os ateliês de bordado, encadernação de livros etc. Nise percebe que os pacientes desenhavam muito no chão e nas paredes. Veio, então, a ideia de criar um ateliê de pintura e modelagem”, conta o jornalista Bernardo Horta, ex-aluno de Nise que acabou tornando amigo da psiquiatra.

“No ateliê, houve uma explosão de pinturas, desenhos e esculturas que Nise e sua equipe não esperavam. Nise, que já lia Jung, percebe que constata aquilo que o psicanalista afirmava: se para o neurótico – o que seria todos nós, segundo Freud – o tratamento é através da palavra, ou seja, a psicanálise, para o esquizofrênico, segundo Jung, a palavra não dá conta. Para esse paciente, o tratamento deveria ser pela imagem”, explica Bernardo, autor da biografia Nise — arqueóloga dos mares (Ed. Aeroplano), que inspirou o filme Nise, o coração da loucura, com estreia prevista para o primeiro semestre de 2016 (leia aqui).

A produção dos internos no ateliê de pintura e modelagem do STOR cresce de tal modo que, em 1950, o acervo é exposto pela primeira vez. O lugar escolhido é o I Congresso Internacional de Psiquiatria, em Paris, na “Exposição de Arte Psicopatológica”. Em 1952, Nise reúne todo o acervo do ateliê e inaugura o Museu de Imagens do Inconsciente, no Rio de Janeiro, hoje com mais de 360 mil obras. Apesar de não considerar os desenhos e pinturas apresentados no Museu como obras artísticas, o trabalho de Nise à frente do ateliê revelou, com o respaldo do crítico de arte Mário Pedrosa, sete pacientes que foram considerados talentosos artistas plásticos, apelidados pela psiquiatra de “os sete camafeus”.

Segundo a arteterapeuta vinculada ao IJEP – Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa, Santina Rodrigues de Oliveira, Nise foi precursora do pensamento junguiano no Brasil. Mais do que promover avanços significativos na terapia ocupacional, a união entre Nise e Jung serviu de sustentação para a militância política antipsiquiatrica da médica. “Em Jung, ela encontrou o respaldo teórico necessário para sustentar suas práticas num momento sombrio da psiquiatria, que ainda se utilizava de recursos tenebrosos à época, como o eletrochoque. Nise nunca deu a esse método o nome de arte terapia, mas suas pesquisas fomentaram e contribuíram para o desenvolvimento dessa abordagem, especialmente no Brasil, entre analistas junguianos”, explica Santina.

As mandalas

Em 1954, após passar anos observando seus pacientes desenharem formas circulares no ateliê do STOR, a psiquiatra passa a defender que aquelas pinturas tinham algo em comum: eram mandalas.

“Os profissionais da equipe de Nise falavam que era impossível os pacientes estarem fazendo mandalas, porque eles não sabiam o que era isso. Os pacientes eram pessoas muito humildes e pobres, a maioria analfabeta, e a mandala é uma figura oriental, do sânscrito. Mas Nise afirmava que aqueles desenhos eram mandalas e representavam a fala de Jung, que escreveu que as formas circulares eram a tentativa do esquizofrênico de se reorganizar”, conta Bernardo.

Desde os primeiros desenhos, Santina explica que Nise percebia nas formas circulares de seus pacientes “um arquétipo que agiria, segundo a obra de Jung, para reequilibrar a psique do esquizofrênico, especialmente em momentos de crise”.

Contra a vontade de sua equipe, Nise fotografa os desenhos circulares de seus pacientes e manda o material, junto a uma carta em francês, ao próprio Carl Jung, na Suíça. Meses depois, para a surpresa da médica, a assessora de Jung escreve para Nise. “A assessora comenta que Jung ficou muito impressionado com o material, que se surpreendeu ao descobrir que aquele trabalho estava sendo feito em um hospício do subúrbio brasileiro e confirmava que aquelas figuras eram, de fato,  mandalas. Jung e Nise, então, passam a se corresponder e o nome de Nise começa a ser associado ao do psicanalista internacionalmente”, explica Bernardo. As cartas trocadas viraram documentos históricos e estão expostas no Instituto Junguiano de Zurique.

Em 1957, Jung convida Nise para passar um ano estudando com ele no Instituto Junguiano e a expor o acervo do Museu de Imagens do Inconsciente no II Congresso Internacional de Psiquiatria. A médica passa um ano com Jung na Suíça e ganha projeção internacional. Na volta ao Brasil, Nise cria o Grupo de Estudos C. G. Jung no Rio de Janeiro, que coordenou até morrer, em 1999.

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Jung, Freud e Nise

Bernardo frequentou o grupo de estudos junguianos de Nise por 12 anos. O jornalista conta que presenciou inúmeras vezes a psiquiatra declarar respeito a Freud, mas afirmar que foi na obra de Jung que encontrou as ferramentas mais adequadas para desenvolver a terapia ocupacional no Brasil. “Jung foi discípulo de Freud, mas aconteceu uma cisão e os dois rompem. Existem analistas que afirmam que a relação entre Jung e Freud marcou a psicanálise moderna. Nise leu e releu as obras de Freud em inglês e espanhol, assim como leu muito também a obre de Jung. Nise era uma devoradora de livros, um gênio, o que a fez conhecer profundamente a obra dos dois para formular a sua”.

A diferença entre Freud e Jung no tratamento do esquizofrênico foi a parte da obra na qual Nise se debruçou por anos. “Enquanto Freud estudou os esquizofrênicos e afirmou que o lugar de tratamento deles era o divã, Jung observou os esquizofrênicos e afirmou que o tratamento deles deveria se dar por meio da expressão plástica – veja bem, não artística, mas plástica – e o divã deveria ser substituído pelo ateliê. Ao tratar de fato o esquizofrênico e não somente estudá-lo, Nise fez o trabalho de Jung evoluir e aprofundou as ideias dele”, explica o jornalista.

TEXTO ORIGINAL DE REVISTA CULT






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