O Problema do Atendimento Social na Psicologia

Por Igor Teo*

Uma prática comum aos profissionais de psicologia é o atendimento social. Praticado normalmente pelos psicólogos em início de carreira como uma forma de conseguir clientes quando ainda não se é suficientemente conhecido no mercado e construir uma experiência clínica, o atendimento social pode trazer muitos problemas ao profissional e à categoria.

Neste texto vamos explicar estas questões. Mas antes, conto que a motivação para escrever este texto surgiu quando vi uma publicação onde uma pessoa numa rede social pedia recomendação de atendimento social em psicologia para ela, e colocava uma curiosa observação: “lembrando que 70 reais não é atendimento social”.

Não é?

Perguntando a muitas pessoas qual seria o valor para o tal atendimento social, me deparei com respostas como 20 ou 25 reais pela sessão. Ora, este valor sequer cobre a sublocação do consultório numa cidade como o Rio de Janeiro.

No valor de uma consulta não está sendo pago apenas a hora do profissional. Está ali incluído o aluguel da sala, o pagamento das contas de água e luz do estabelecimento, os encargos sociais e os demais impostos do trabalhador, sua dedicação e disponibilidade, a sua formação de muitos anos para poder desempenhar aquele trabalho, as horas extras de preparação para além da consulta e que sua atividade exige, e muito mais.

Quando o valor cobrado por uma sessão é reduzido, se continuamos pagando as contas para manter o nosso consultório materialmente funcionando, de onde estamos cortando esse dinheiro? Que parte do nosso importante trabalho está deixando de ser reconhecido e consequentemente remunerado?

Eu entendo que o Brasil é um país com condições sociais muito complicadas, que atravessamos um momento de crise, e muitas vezes queremos ajudar as pessoas como podemos. Inclusive sacrificando um pouco de nós para isto. Se nós não nos preocupássemos com o outro sequer teríamos escolhido ser psicólogos.

Mas quando fazemos isso temos que perceber que estamos a correr grandes riscos.

O primeiro é que estamos desvalorizando a profissão. Quando aceitamos valores menores do que realmente merecemos estamos dizendo à sociedade que aquele é o nosso verdadeiro valor. Quando milhares de psicólogos fazem o mesmo, criando um grande mercado de “atendimento social” a baixo custo, estamos passando a mensagem que sempre haverá aqueles profissionais que prestam um serviço barato, e que investir um pouco mais na sua saúde mental não vale a pena. Afinal, por que pagar mais caro se há sempre o mais barato?

Isso cria uma normalização por baixo. Profissionais precisam oferecer atendimentos cada vez mais baratos – ainda que os custos de manutenção do nosso trabalho sigam crescendo – para ter clientes e manter a sua clínica em atividade. Ou seja, há uma precarização do trabalho e do trabalhador. Trabalhamos cada vez mais horas, recebendo cada vez menos, porque nosso trabalho é menos reconhecido.

Há psicólogos que trabalham em clínicas privadas e para planos de saúde que, depois de todos os descontos, recebem por volta 10 reais a hora de trabalho. Lembrando que estamos falando de uma atividade especializada, que nos custou anos de investimento, não só de tempo, mas de dinheiro. Foram faculdades, cursos, especializações, livros comprados, eventos.

Por um lado, é totalmente compreensível o trabalhador que aceita isso porque quer ter clientes ou quer exercer a profissão de seu sonho de qualquer modo. Não estou a criticá-lo. Por outro lado, é preciso reconhecer a nossa responsabilidade em zelar pela categoria.

Conheci também muitos psicólogos que trabalharam por anos com atendimento social, pensando que seria apenas o início da carreira, mas depois não conseguiam cobrar “valores normais”. Este é o segundo problema. Não só a categoria é lesada com a prática, mas a própria imagem do profissional.

Se você está sempre oferecendo seu trabalho a um determinado valor, você passa à sociedade que este é o valor do seu trabalho. Ninguém vai saber dos descontos que está fazendo a si mesmo. Depois que a imagem do seu trabalho é naturalizada de uma determinada forma, é muito difícil você convencer as pessoas que seu trabalho possa valer mais. Sua imagem como profissional já está danificada.

E mais! Oferecer o atendimento social como porta de entrada ao seu serviço fere o código de ética da profissão[1], que em seu artigo 20 diz que o psicólogo ao promover o seu serviço não pode utilizar o preço como forma de propaganda. Ou seja, se você usa o valor da consulta como vantagem para atrair clientes, está contra as normas deontológicas da profissão.

Dada essas considerações, devemos nos perguntar: será que o atendimento social é sempre necessário? Será que realmente as pessoas não têm dinheiro para pagar uma terapia, ou nosso trabalho que não é visto como prioridade por muitas pessoas?

Tenho muitas dúvidas se todas as pessoas que buscam o atendimento social realmente o fazem por necessidade, ou se – justamente pela precarização de nossa categoria – acreditam que não devem “pagar muito” por nosso serviço. Afinal, por que pagar para só falar com uma pessoa? Precisamos urgentemente investir na conscientização social do valor de nosso trabalho.

Porém, há casos sim de necessidade de atendimento social. Pessoas que precisam de atendimento psicológico e que não possuem condições financeiras para tanto. Nesta situação, eu entendo o profissional que se solidariza, e arcando com o prejuízo, deseja ajudar o seu paciente. No entanto, não é responsabilidade da nossa profissão suprir as falhas do Estado.

Idealmente, seria necessário existirem nos centros públicos de saúde das cidades brasileiras tanto psicólogos quanto médicos e dentistas para atenderem a população. Assim como quem não pode pagar um hospital privado ainda pode recorrer ao sistema público de internação, o mesmo deveria valer à saúde mental, contando com psicólogos suficientes contratados e concursados pagos pelo Estado.

Mas como estamos longe desse ideal, o que fazemos? Tomamos para nós a responsabilidade de atender os casos em que o Estado falhou. E o que acontece? Já vi gente irritada porque o psicólogo não aceitou continuar o atendimento social. Como se o psicólogo tivesse a obrigação de fazê-lo. A irritação da população deveria se voltar aos nossos governantes, exigindo médicos e psicólogos no sistema público de saúde.

Concluindo, o atendimento social é compreensível nos contextos de universidades e clínicas-escola, que não são entidades lucrativas. São instituições de formação. No entanto, o profissional formado que continua a praticá-lo deve ter alguns cuidados quanto a precarização de seu próprio trabalho. Somos todos responsáveis pela nossa profissão.

Quanto a questão da flexibilização do preço, sobretudo numa sociedade como a brasileira em que dificuldades econômicas são uma realidade, vejo uma alternativa interessante praticada na psicanálise lacaniana. Os psicanalistas não possuem valores pré-estabelecidos, mas estão disponíveis a discutir com seus pacientes a possibilidade e a situação particular de cada um.

É diferente de um atendimento social na medida em que não se trata de uma forma de propaganda ou uma modalidade de atendimento destinado a algumas pessoas. Trata-se de como a própria prática se orienta. Isso permite que possamos flexibilizar nossos valores quando necessário, respeitando obviamente os nossos mínimos para que haja o trabalho, sem com isso nos deslegitimar como profissionais.

Ninguém deve fazer um atendimento social por caridade ou devoção. Isto fica para os santos e mártires da Igreja. Os psicólogos são profissionais preocupados com bem-estar social. Precisamos saber equilibrar nossa profissionalidade com nosso compromisso social. O valor da sua sessão não é apenas o preço do seu produto. É também o reconhecimento por seu trabalho e estudo, e as transformações que você pode criar no mundo. E como vamos ajudar o mundo e as pessoas se não conseguimos ajudar nem a nós mesmos?

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*Igor Teo é psicanalista. Formado em Psicologia e Mestre em Psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Para mais conteúdo e contato, acesse o seu site.

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[1] https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2012/07/codigo-de-etica-psicologia-1.pdf






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