A relação do analista com o inconsciente

Ninguém será um bom analista se não compreender as forças inconscientes que moldam, formatam e caracterizam o modo de ser das pessoas. Por causa disso, só nos tornamos analistas após a realização de uma profunda análise pessoal (antigamente chamada de análise didática). Conhecer academicamente a Psicanálise não fará um analista. Cursos, congressos, workshops, ensino à distância não fazem de ninguém um analista. É necessário o conhecimento formal da Psicanálise, sim, mas isso não basta. Porque é difícil entender um paciente sem um conhecimento intrínseco e funcional dos processos inconscientes.

Há muitos objetivos para alguém se submeter a uma Psicanálise, mas o objetivo central é nos ajudar a desenvolver um sentido (de vida) mais claro, criativo e flexível a respeito deste mesmo sentido. A contribuição principal de Freud é a descrição do Inconsciente: aquela parcela da vida psíquica – alguns vão falar de 90% da mente – da qual não se está ciente. Impulsos; afetos; ideias; desejos e medos que operam de maneira obscura, velada e misteriosa, exercendo uma influência, de longe a maior, sobre nossas decisões; nossas atitudes e nossos comportamentos.

O edifício psicanalítico é – em cada psicanalista que se autoriza teorizar – uma tentativa de esclarecer as razões que temos para ser e fazer o que somos e fazemos. Mesmo pensar o que pensamos e crer no que cremos vem das profundezas de nosso inconsciente ou são, ao menos em parte, resultado de motivações inconscientes. Por isso os terapeutas precisam de um conhecimento funcional do Inconsciente para iluminar e arejar essas salas secretas do ser. O analista vai tentar dar sentido à dinâmica do Inconsciente que está causando a desorientação ou o sintoma do cliente e encontrará dentro de si mesmo meios e palavras, símbolos, para interpretá-lo de modo proveitoso.

Para a Psicanálise, diferente de outras correntes da Psicologia, todos os sintomas e toda a psicopatologia representam metáforas inconscientes. Entretanto, é bom saber, desde o início, que nem sempre a descoberta (insight) e explicitação destas motivações tiram do paciente o sintoma e sua angústia subsequente. É imprescindível acrescentar a qualidade de relacionamento entre terapeuta e paciente. Em linguagem técnica: a transferência e contratransferência. Embora nem todos os psicanalistas concordem, a grande maioria crê que o que ficou partido, ferido, nas relações primitivas do paciente pode ser reparado ali, no espaço analítico, ainda que de modo obscuro ou imperceptível.

A partir de sua experiência clínica, inicialmente com histéricas, Freud percebeu que o que chamamos de consciência é apenas uma mínima parcela da vida mental do ser humano. Descreveu o Inconsciente como um reservatório – um amplo hall em uma pequena sala de visitas, para a qual o hall de entrada dá acesso. Na sala, habita a consciência, com o que nossos impulsos e desejos mais profundos e secretos tentam conseguir holofote. Luz. No corredor, entre o hall e a sala, fica de vigia um soldado, cuja tarefa consiste em examinar cada pulsão que busca admissão. Por fim, decide se é aceitável ou não. Se não lhe der crédito, expulsa de novo para o hall, onde deve permanecer em insistência, às vezes penosa para o sujeito.

Mas… e se uma pulsão inaceitável consegue ultrapassar a divisa? O soldado a expulsa, tenta expeli-la e empurrá-la de volta para o inconsciente. As pulsões devolvidas, assim, são ditas reprimidas, recalcadas. Pois apenas quando um impulso consegue ser admitido na sala de visitas é que se torna consciente e apreendido pela consciência. Os impulsos que estão na sala de visitas insistindo para serem aceitos estão na esfera do que Freud denominou pré-consciente. A sala de visitas é o sistema do pré-consciente e o soldado que recalca a cada vez as pulsões são como resistências que o analista tentará remover para dar mais liberdade de escolha ao paciente. A causa das resistências são medos, culpas ou vergonhas que a consciência poderá sentir se permitir a liberação dos impulsos.

Entretanto, aquilo que foi recalcado não está morto ou totalmente amordaçado. Continua a insistir e a participar da vida mental do sujeito. Muitos sintomas surgem a partir desses conflitos internos. As pulsões operam, dentro de nós, sem dar importância à realidade do sujeito. O papel do analista será, assim, tornar consciente o que está inconsciente. Remover os registros inconscientes e apresentá-los ao paciente. Este, livre, seguro e amparado pela relação com o analista, poderá, então, decidir o que fazer dessas pulsões, sem os temores infantis que o fizeram recalcar.

As pulsões inconscientes agem baseadas no princípio do prazer: querem ser atendidas agora. Não raciocinam. Não medem consequências. Não se impõem limites ou adiamentos da gratificação do gozo. Sempre existe um conflito entre os princípios do prazer e da realidade. É como uma criança discutindo com um adulto. Essa criança – impulsos instintivos, sexuais e agressivos – é totalmente inconsciente e insociável. Exige gozo pleno e sem demora. Não tem bom senso como também não se importa com o bem-estar dos outros. Daí a luta com o adulto. O adulto é nossa consciência moral, que absorveu padrões, crenças e proibições dos pais, da religião e da sociedade. Em parte esta moralidade é consciente: conhecemos o que nossa consciência permite ou proíbe. Mas sabemos que também é inconsciente e, muitas vezes, tão cruel em suas exigências, que não nos compreendemos.

Entre o que chamo aqui de criança (Freud o chamou de ID) e o que chamo de adulto (SUPEREGO) há o EGO. A função executiva que media entre o ID, o SUPEREGO e o MUNDO EXTERIOR. Funciona de acordo com as leis do pensamento racional e do princípio de realidade. Preocupa-se com as consequências e faz o melhor que pode para barrar, conter ou adiar a gratificação, com o intuito de evitar problemas para o indivíduo ou obter um maior prazer no futuro. O EGO sofre uma pressão contínua do ID e também carrega consigo parcelas inconscientes. A saúde mental depende em grande parte da força e da flexibilidade do EGO.

A tarefa do analista será, assim, interpretar o inconsciente, mas também ajudar o paciente a organizar, focalizar e aumentar a própria vida, incluindo o amor, a satisfação profissional, o conhecimento, a sabedoria, a cultura, os valores humanos e o ócio criativo. Só conseguirá cumprir sua função se, antes, passou com outro analista pelo mesmo processo. Metaforizando: será um bom pai se tiver sido bom filho. Dará frutos se foi regado e podado, arejado e iluminado. O psicanalista é, como terapeuta, um facilitador. Alguém que ilumina o escuro porque, antes, já teve alguém que o iluminou. Metáforas. Modos de simbolizar uma arte que, em muitos aspectos, é intraduzível, porque lida com o Real. Fica sempre o não-dito. Daí que uma Análise é sempre terminável e interminável.






Paulo Emanuel Machado é psicanalista, escritor e professor. Tem dois romances publicados: A TEMPESTADE (Editora Scortecci, 2014) e VOCÊ NÃO PODE SER O OCEANO (Edição independente, 2015), ambos baseados em relatos de pacientes e alunos. O primeiro sobre abuso sexual; o segundo sobre a travessia difícil da adolescência. Também possui artigos publicados e contos em antologias. É de Salvador, Bahia, nascido a 10 de janeiro de 1960.