5 considerações sobre aspectos psicológicos da série “O Gambito da Rainha”

No último dia 23 de outubro de 2020 estreiou na plataforma de streaming “Netflix” a minissérie de 7 episódios: “O Gambito da Rainha”.

Abaixo, você encontra um fragmento da publicação original 6 motivos que fazem de O Gambito da Rainha seja irresistível e provavelmente a melhor minissérie de 2020, escrito pela psicóloga Josie Conti, que foi selecionado e adaptado para publicação no Psicologias do Brasil, pois trata especificamente de aspectos psicológicos que observamos no filme.

Lembramos que os trechos abaixo contém spoilers.

1- Sobre a temática e a questão da institucionalização

A história se passa nos anos 1950 quando a menina de 9 anos, Beth Harmon, interpretada por Isla Johnson na infância e por Anya Taylor-Joy da adolescência, torna-se órfã e é dirigida a um orfanato em Kentucky, no sudoeste dos EUA . Dentro a instituição acompanhamos a luta pela adaptação da criança, seu luto, construção de pequenos vínculos, introdução ao vício em tranquilizantes, com pílulas que eram fornecidas pela própria instituição e, o mais marcante na vida da protagonista: a descoberta do xadrez em um dia qualquer, quando levava os apagadores para bater o pó no porão do orfanato.

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Em suma, vemos uma história de amadurecimento e acompanhamos aspectos que mostram o preço da sua genialidade, segundo a própria descrição oficial da série. Dentro do enredo acompanhamos questões sociais relevantes ligadas a institucionalização de crianças, as dificuldades para a adoção de crianças maiores e da própria medicação fornecida pelo estado, mencionada há pouco.

Acompanhamos ainda, ao fundo, questões políticas da época, quando ainda “reinava” a Guerra Fria. Vemos questões sociais, como o racismo (apresentadas sutilmente pela colega de quarto de Beth, Jolene (Moses Ingram), que deixa todo mundo com gostinho de quero mais toda vez que aparece), e a história da pequena Elisabeth que, gradativamente, ganha espaço em um mundo considerado masculino, como é o caso do xadrez, trabalhando também questões ligadas ao lugar da mulher na sociedade. Isso, não podemos nos esquecer, mesclando de forma ímpar aspectos do mundo real e imaginário da protagonista que ajudam-na a superar essa jornada.

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2- A questão do abandono e do luto

A série trabalha o abandono nas mais diversas formas. Vemos o luto concreto da perda da mãe, que dá inicio ao enredo de forma mais clara, quando Beth é institucionalizada. Segue-se daí o luto por toda uma vida pregressa e a adaptação a vida de vínculos superficiais de uma instituição. Vemos como Beth sobrevive utilizando-se de uma vida isolada, vemos a fuga pela medicação e, posteriormente, na obsessão pelo xadrez que é apresentado por um dos seus maiores amigos, um zelador chamado Shaibel (Bill Camp) que certamente a amava, mas que não conseguia demonstrar o seu afeto porque era calado um tanto antissocial.

Tudo isso fez com que Beth criasse uma couraça emocional que, para um observador mais leigo na compreensão da psicologia humana, poderia parecer uma postura arrogante, mas que na verdade nada mais era do que um escudo emocional que permitia que sobrevivesse e seguisse, ora com distanciamento emocional, ora entorpecida por tranquilizantes e pelo álcool. Vencer, certamente, era um momento de energia e desafio intelectual, mas também era uma forma de provar para si mesma que ela tinha valor.

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No meio dos enxadristas Beth também encontrou um ambiente em que sua genialidade- fato que também afasta uma pessoa dentre as outras- encontrasse pessoas semelhantes e que, através do jogo, podiam se comunicar de forma mais igual. Afinal, lá ela era ela mesma. Lá ela era compreendida e adorada e, ao contrário de uma vida de abandono, lá ela era amada e admirada. No figurino da Sra Harmon, que comentaremos no item abaixo, nós também vemos como ela cresce em sua independência como pessoa.

Durante a sua entrada na instituição é tirada dela a roupa com o nome bordado pela mãe, uma cena cruel em que a diretora da instituição lhe fornece uma vestimenta cinza e sem vida e diz que sua roupa atual será queimada. Tudo isso numa possível metáfora de que toda e qualquer individualidade seria também queimada com a entrada na instituição.

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3- Seguindo com a metáfora das roupas

Na instituição Beth não podia opinar sobre o que vestia. Logo que foi adotada, sua mae adotiva comprou roupas novas para ela, mas ela também não pode escolher. Eram roupas fora de moda e provenientes de uma promoção. Essa compra, entretanto, refletiu significativamente sobre a maneira como suas novas colegas de escola a viam e gerou cenas de humilhação e rejeição. Nesse momento, Beth percebeu-se “inadequada” e não incluída.

Entretando, assim que ela conseguiu dinheiro após conquistar os primeiros prêmios, ela  pode comprar as roupas que queria.

Assim, o uso das roupas, desde que ela pode fazer a primeira escolha do que vestir até, posteriormente, quando tornou-se praticamente um ícone fashion, mostra como Beth crescia como mulher.

Na metáfora das roupas percebemos que,  quanto mais bela e independente ela se sentisse por dentro, mais incríveis e elegantes se tornassem também as suas roupas. Nesse ponto, claro, também aparece um ponto de dependência da protagonista quando ela disse que não tinha dinheiro para um torneio porque tinha comprado vestidos demais, mas mesmo assim esse aspecto não invalida a sua construção emocional que segue em um contínuo positivo, apesar de suas quedas.

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4- A dependência química

Beth é filha de uma mulher que possui um transtorno psiquiátrico e, inclusive, tirou a própria vida, deixando Beth órfã.

Na instituição Beth, entra em contato com calmantes, que eram forncedidos pelo estado, mas aprende a manipulá-los para alcançar prazer, iniciando o uso em doses maiores e chegando a dependência.

Posteriormente Beth é adotada por uma mulher que é claramente dependente de alcool e outras medicações.

Tudo isso faz com que o terreno para sua própria depencência seja fértil e praticamente inevitável.

A protagonista, ao longo da série, começa a perceber sua perda de controle com relação ao uso de medicamentos e do álcool. Em diferentes momentos pessoas próximas (sua rede de apoio) tentam ajudá-la, mesmo que em vão. Entretanto, após inúmeros incidentes, ela começa a tomar consiência de que precisa ficar abstinente e sua vida remoma os trilhos.

O exemplo de Beth serve para todos que, pelos mais diversos motivos, tornaram-se dependentes e sempre serão: uma vida de qualidade só será possível frente a total abstinência.

5- A superação através da quebra de esteriótipos

A minissérie mostra que uma mulher inteligente também pode ser feminina e glamorosa, quebrando o esteriótico da nerd desajeitada e mal vestida. Beth mostra que pode ser independente em uma sociedade e em um segmento profissional machista e mesmo assim vencer e ser feliz.

Beth segue apesar de seus traumas e da dependência química mostrando que é possível sobreviver a ambas as coisas.

Em outros momentos ela mostra que existe amor, mesmo sem palavras claras e grandes demonstrações, como acontece com seu amor pelo zelador, que foi um amor que aconteceu através das entrelinhas e de um tabuleiro.

Ela mostra, ainda, que ser humano é ser falho, apesar de sua genialidade.

E nós assistimos a tudo isso orgulhosos dela.

****

Depois desses pontos, há como não adorar “O Gambito da Rainha”?

Espero que vejam, revejam e indiquem essa experiência.

Abaixo, segue o trailer

Todas as imagens: reprodução-divulgação






JOSIE CONTI é psicóloga com enfoque em psicoterapia online, idealizadora, administradora e responsável editorial do site CONTI outra e de suas redes sociais. Sua empresa ainda faz a gestão de sites como A Soma de Todos os Afetos e Psicologias do Brasil. Contato para Atendimento Psicoterápico Online com Josie Conti pelo WhatsApp: (55) 19 9 9950 6332