A força que move o ser humano

É o desejo que move o homem. Sem anseios, sem desejos, expectativas, planos, projetos, metas somos os mais miseráveis dos seres. Conhecer o próprio desejo; especificá-lo e ir atrás de realizá-lo é o que nos distingue dos demais animais. Qualquer Análise empreendida, quando bem dirigida, tem a intenção de barrar o sofrimento que se repete na rotina do sujeito e fazê-lo descobrir o desejo que o move desde dentro. Não há vida real de fora para dentro, mas do inconsciente para o consciente esta é a vida mais singular e autêntica.

Para a Psicanálise, a força vital – a libido, o desejo – é uma energia que se transmite no ato da fecundação e nos é inerente: energia ou impulso criador, que nos assegura expansão, perpetuação e criatividade. Vida, enfim. Vida se confunde com desejo, libido. Freud a vê essencialmente como sexual, embora não seja exclusivamente sexual, contendo elementos comuns a outras funções. Passará, desde o nascimento até a vida adulta, por uma série de fases, transformações e mesmo fixações. Desembocará, finalmente, no exercício da função genital ou será sublimada em outros objetivos.

Observando bebês e crianças, percebemos que seus desejos, suas fantasias e seus prazeres existem desde cedo e se desenvolvem, exceto por breve período (dito de latência), ao longo de toda a nossa existência. De modo categórico, o criador da Psicanálise enfatiza em seus textos que as causas de nossos problemas e dificuldades, dos menores aos maiores, encontram-se na vida sexual primitiva. Muitas pessoas ainda se chocam com o vocábulo sexual relacionado aos bebês e às crianças. Entretanto, Freud admite que nossos primeiros prazeres físicos são, sim, sexuais, pois contém as sementes da sexualidade adulta.

A sexualidade infantil passará por uma série de sucessões durante os doze primeiros anos de vida, mais ou menos, cada fase caracterizada por um interesse especificado em determinada zona do corpo. Ao nascermos, a libido não tem objeto nem finalidade sexual específica, mas se revela através de sensações físicas prazerosas.

O modo como são exercidas as funções maternas e paternas, as respostas das crianças a essas funções e a interação quase contínua (ou ausente) entre filhos e pais produzem efeitos que carregamos para a vida toda.

Como não cansa de dizer a Psicanálise, nossas primeiras relações humanas exercem força determinante em nosso caráter e desenvolvimento posterior. Todos os nossos grilhões atuais são consequências de questões acontecidas em uma dessas fases de desenvolvimento. Na tipologia freudiana, a criança atravessará cada uma delas como alguém pisando em ovos. Uma parte do corpo é fortemente excitada pela libido e cada atividade a ela relacionada terá importância marcante para a criança em suas representações psíquicas (ideias conscientes ou inconscientes).

Muito cedo, a mucosa bucal se constitui como primeira zona erógena: a chamada “fase oral”, que normalmente vai desde o nascimento até mais ou menos um ano e meio. A criança vai pedir seu alimento através do choro e vai se acalmar quando atendida. Mas irá além da nutrição e esta sucção passará a ter significação de desejo, prazer e exploração do ambiente feita em grande parte com a boca. Nossas primeiras frustrações são orais e se relacionam à fome, à sede e a uma necessidade não satisfeitas de sugar. De igual modo, a boca também exercerá nossa primitiva agressividade: morder, berrar e chorar para dizer ao mundo o que desejamos ou como reagimos ao desejo do Outro.

A teoria freudiana explica que, aproximando-se do segundo ano de vida, a libido se encaminha para o outro extremo do aparelho digestivo: a mucosa anal, inaugurando a chamada “fase anal” que perdura até mais ou menos os três anos de idade. A criança começa a demonstrar intenso interesse por suas fezes e pelo próprio ato de defecar. Muitas se acostumam a reter seus excrementos para obter um prazer acrescentado na hora da expulsão. Outras introduzem os próprios dedos com a mesma finalidade. Ou coçam a zona anal. Crianças que revelam erotismo anal intenso comem suas fezes ou brincam com elas obtendo muito prazer.

Durante essa fase, as pulsões sexuais e agressivas também se ligam, podendo, no adulto, manifestar-se consciente ou inconscientemente com comportamentos sexuais sádicos e/ou masoquistas. Nesta fase, as crianças aprendem que há um conflito, às vezes grave, entre seus desejos instintivos, sua busca desenfreada de prazer e as necessidades, demandas e os desejos dos adultos circundantes. Podem surgir comportamentos compulsivos associados à intensa culpabilidade. Freud também compreendeu, através da Análise de seus pacientes, que há, no inconsciente, associação entre fezes e dinheiro; fezes e obras artísticas; fezes e bebês.

Dos três aos sete anos, em média, as crianças entram na “fase fálica” e no Complexo de Édipo. Ficam cheias de interesse nas diferenças anatômicas entre os sexos. Percebem intenso prazer com a manipulação do pênis ou do clitóris, e este novo prazer se torna prioritário. Fantasias genitais afloram e, em torno dos cinco anos, a vida sexual infantil deixa de ser predominantemente autoerótica para focalizar-se em outros objetos. Mesmo assim, continuam existindo outras zonas erógenas que tentam monopolizar a libido: as regiões peitorais e os glúteos; o rosto; a pele; o olhar e as zonas anteriormente descritas.

Muitas coisas podem acontecer neste período. Há crianças que vão se fixar na masturbação como a forma mais satisfatória do prazer libidinoso. Um garotinho que se orgulhar demais de possuir o pênis pode transformar-se num adulto que utiliza o falo para exibir-se ou agredir, ao invés de fazer amor. Uma menina com fixação fálica pode se tornar uma mulher com baixa autoestima, particularmente em relação aos homens por acreditar que deve ser passiva e submissa. Qualquer fixação fálica severa acarreta pobreza na realização sexual genital. Um adulto assim será inibido sexualmente, incapaz de contato emocional ou de valorizar o parceiro como companheiro de um vínculo afetivo profundo. Tentará apenas obter o prazer genital de forma mecânica, robotizada, fria. Tipo fast-food.

O momento mais decisivo, porém, desta fase é o da introdução do Complexo de Édipo. Freud diz, sem temor, que apaixonar-se por um dos pais e odiar o outro são fenômenos inconscientes que figuram entre os componentes essenciais do acervo de impulsos psíquicos que se formam na infância. A saúde mental depende, para a Psicanálise, em grande medida, da capacidade de nos libertarmos destes sentimentos primitivos. Entretanto, todo Analista sabe que poucos de nós se livram inteiramente deles. Em maior ou menor grau, ficarão escondidos no Inconsciente na forma de desejos ou medos, e manifestar-se-ão como compulsão à repetição.

Por se tratar de fantasias incestuosas e homicidas, tentamos reprimi-las de todo o modo por nos serem perigoso e assustador. No entanto, terminam por gerar sintomas e a exercer influência em nossas decisões, ações e comportamentos. Freud conseguiu comprovar que o tabu do incesto permeia nossa existência e, de algum modo, é o que nos torna “civilizados”. O Complexo de Édipo é, assim, um fenômeno crucial da condição humana. Inclui, em si, o modo como lidamos conosco, com o próximo, com questões existenciais e até metafísicas. Nossa felicidade ou infelicidade diária dependem sobremaneira do modo como liquidamos ou não essas fortíssimas fantasias infantis.

Freud verificou, em seguida, que a criança atravessa um período aparentemente sem manifestações sexuais objetivas e chamou-o de “fase de latência”. É o momento da socialização, do aprendizado escolar contínuo e da participação mais intensa no mundo da linguagem e da cultura. A criança, sob influência da educação e do meio social onde está inserida, desenvolverá, então, mecanismos inibidores de suas tendências libidinosas, mecanismos de defesa contra seus instintos mais difíceis de lidar e comportamentos mais aceitos pelos pais e o entorno. Por fim, chegando à adolescência, mergulhada em seus hormônios e crescimento, o indivíduo reviverá inconscientemente tudo o que viveu antes desde a “fase oral”. Terminará entrando na “fase genital”, diferenciando-se em sua identidade de gênero e orientação sexual. Os adolescentes descobrirão, cada um a seu tempo e modo, um meio de dirigir a libido, o desejo – a força vital – para outras pessoas e metas aprovadas.

A vida do homem sobre a terra é um peregrinar contínuo que só tem seu fim com a morte. Peregrinar atrás de desejos que se deslocam um para outro enquanto são realizados. De maneira completa e plena, nada satisfaz o ser humano. A proibição do incesto e do parricídio – o que chamamos de castração – tiram do homem o gozo absoluto. Tudo em nós é menor; é barrado. Desejamos e vamos sempre desejando para nos constituirmos humanos e vivermos, mas vamos também sempre nos frustrando, caindo e nos erguendo no mundo feito para nós de linguagem e expectativa.






Paulo Emanuel Machado é psicanalista, escritor e professor. Tem dois romances publicados: A TEMPESTADE (Editora Scortecci, 2014) e VOCÊ NÃO PODE SER O OCEANO (Edição independente, 2015), ambos baseados em relatos de pacientes e alunos. O primeiro sobre abuso sexual; o segundo sobre a travessia difícil da adolescência. Também possui artigos publicados e contos em antologias. É de Salvador, Bahia, nascido a 10 de janeiro de 1960.