A cegueira de Saramago

E se nós todos fôssemos cegos? Esse foi o questionamento que levou José Saramago a escrever o seu livro de maior sucesso – “Ensaio sobre a cegueira” -, em que trabalha, sob uma perspectiva filosófica e sociológica, problemas da vida moderna, a partir da metáfora da cegueira.

Para o escritor português, a resposta à pergunta veio rapidamente, pois, em verdade, já estamos cegos; cegos da razão, já que, embora dotados de inteligência, não a usamos para instruir nossas vidas.

A cegueira é apresentada, na obra, como uma doença não diagnosticável chamada de “cegueira branca”, a qual se alastra com imensa velocidade. Assim, pouco a pouco, todos vão ficando cegos, com uma única exceção: uma mulher (mulher do médico). Antes da generalização da cegueira, os primeiros a se cegarem são isolados numa espécie de quarentena, demonstrando, desde já, a cegueira que todos já se encontravam, pois o isolamento era a atitude mais fácil a ser tomada, como se aquelas pessoas fossem frutos podres que deveriam ser exterminados para o bem da árvore.

Na quarentena, eles são tratados como animais e, rapidamente, assim se tornam. Parece-me que, em situações extremas, escassas, os homens são tomados por atitudes primitivas e animalescas. A escassez leva à disputa por espaço, comida, privilégios e poder. O instinto de sobrevivência parece sobrepor-se à razão, pois

“[…] quando a aflição aperta, quando o corpo se nos demanda de dor e angústia, então é que se vê o animalzinho que somos”.

Embora, naquela condição horrível em que se encontravam, não residiam sentimentos de redenção, como o coletivismo e amizade (raras exceções), mas antes, o egoísmo; primeiro, daqueles (Estado) que isolaram os cegos e os tratavam como animais; e depois, dos próprios cegos que, ainda que na mesma situação, não possuíam a menor empatia. O egoísmo faz com que a situação torne-se ainda pior e evidencia o quão forte é essa característica, a qual nos parece intrínseca e permanente como uma pele, como se

“[…] ainda está por nascer o primeiro ser humano desprovido daquela segunda pele a que chamamos egoísmo, bem mais dura que a outra, que por qualquer coisa sangra.”

Conforme o tempo passa, a cegueira se alastra e o caos aumenta. A animalidade torna-se mais aflorada e, como se estivessem no estado de natureza de Hobbes, movidos pelo conatus, pelas suas paixões egoístas, cada um busca a sua sobrevivência, sem preocupar-se com o outro.

Nessa cegueira generalizada, apenas uma mulher mantém a visão, e, por ver, sofre duplamente. Como a única que continuou a enxergar, vivenciou a cegueira que as pessoas se encontravam, mas não somente a física, como também aquela manifestada por Saramago. Ela vivencia a falta de visão que as pessoas têm em relação à realidade, à falta de sensibilidade, de enxergar o problema do outro como um que poderia ser seu, essa incapacidade constante que o homem tem de colocar-se no lugar do outro, ou, como prefere Erich Fromm, a incapacidade de amar.

“É desta massa que nós somos feitos, metade de indiferença e metade de ruindade.”

“A mulher do médico” vivencia a miséria humana, o que somos capazes de fazer para manter a nossa potência, o quanto egoístas somos e o quão difícil é demonstrar o mínimo de compaixão, isto é, sentir a dor com o outro. Essa realidade demonstrada não difere muito da que os personagens viviam antes de cegar, assim como não difere da nossa realidade, uma vez que já vivemos em um mundo de conflitos, egoísmo, medo e isolamento. Não é preciso cegar para entender que lutamos por espaço e poder; que lutamos pela sobrevivência na selva de pedra; que nos tornamos descartáveis.

As únicas coias que importam são as que abastecem o nosso ego. Dificilmente nos preocupamos com o bem coletivo ou se alguém será prejudico por nossas atitudes. De fato, Saramago está certo, todos já estamos cegos. Não foi a cegueira que transformou os homens em animais, eles já eram animais, já viviam em conflito, apenas não viam.

Mas, se estes não viam, havia uma que, podendo olhar, via e, vendo, reparava e, por isso, também sofria, pois entendia que possuía a responsabilidade de ter olhos, quando os outros os perderam; de contribuir para, no mínimo, acalentar os que não veem, tentando mostrar-lhes o caminho e lhes abrir os olhos. A mulher do médico representa a esperança, diante de um mundo cada vez mais burocrático e chato; egoísta e mesquinho.

Isolados nas nossas bolhas, não conseguimos olhar para o lado e, contraditoriamente, em plena era da informação, cada vez menos nos comunicamos; e, quando digo comunicar, não me refiro a dizer palavras lançadas ao vento, mas partilhar algo, tornar comum, afetar o outro e ser afetado.

A reflexão que Saramago nos propõe é desafiadora, pois nos faz questionar o que somos, qual a essência da nossa natureza e qual a responsabilidade de ter olhos, quando os outros os perderam. A metáfora da cegueira branca encaixa-se perfeitamente com a vida moderna (ou pós-moderna), em que não conseguimos enxergar a sociedade doente que nos circunda; a sua fragilidade; a nossa fragilidade; e que, embora tenhamos, hoje, condições de melhorar a vida, esta parece perder o valor.

Para aqueles que ainda não sucumbiram e conseguem pensar fora da caixinha, a de se considerar que precisamos refletir sobre o modus vivendus contemporâneo, sobre o que nos tornamos, sobre o que somos, e entender a responsabilidade de ter olhos, quando os outros os perderam. Pois,

“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”.

Imagem de capa: Reprodução






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