Fakelicidade: a felicidade inatingível influenciada nas redes sociais

Por Nanda Alcantara

Outro dia eu estava vendo uns colegas músicos se apresentarem no litoral baiano e, como adoro fotografar e filmar, fiquei dedicada a isso. Lá estava eu “produzindo conteúdo”. Mas, ok! Isso me diverte, mesmo que não fosse essa a intenção. Pra mim, as fotos e vídeos que faço são poesias. Acho mágico como, ao fotografar, posso mostrar às pessoas o mundo pelas minhas lentes, pela minha perspectiva, mesmo que eu demore até anos para compartilhar isso. Aliás, tenho visto fotos minhas de viagens antigas e, só agora resolvi compartilhar com o mundo. No momento dessas viagens pouco postei, preferi viver intensamente cada momento. Nessa vida mochileira me deparei com muita gente deixando de viver momentos mágicos porque estavam preocupadas em “produzir conteúdo” para as redes sociais.

Acontece que o dono do estabelecimento me chamou e perguntou, com um ar de desprezo e curiosidade “quantos seguidores eu tenho”. Fiquei confusa… por que isso seria relevante? Disse a ele que tenho três seguidores fiéis. Ele nem terminou de me ouvir, rs… Eu estava falando dos meus cachorros que me seguem pela casa o dia inteiro. Então entendi que a importância do que eu falo está sendo avaliada pela quantidade de pessoas que me “seguem”. A relevância da existência hoje é medida por likes, não pelo conteúdo que entregamos pro mundo.

Recentemente comecei a usar mais a rede social dos seguidores, mas nunca tive paciência para acompanhar influencers. Não consigo! Gente, como assim? Alguém para eu seguir que tem a função de me influenciar? A minha existência sempre foi na contramão disso! Até escolhi uma profissão que é uma quebra nesse paradigma. A minha função, profissionalmente, é auxiliar as pessoas a se tornarem quem elas são de verdade, independente do que acreditem que o mundo espera delas, e não a se encaixarem em padrões, expectativas, moldes e parâmetros.

Mas, fora a minha profissão, que só consigo exercer porque tenho essa aptidão, eu sempre fui uma pessoa subversiva. Me lembro que desde muito cedo, ainda criança pequena, eu contestava a expectativa que tinham de mim. Em uma ocasião, na festa de aniversário de uma vizinha, minha mãe me arrumou feito uma “princesinha”! Um vestido daqueles de mangas bufantes, sapatinho de verniz, cabelos devidamente arrumados em um penteado que parecia um mini traje de gala, parecia uma princesa dos desenhos que eu assistia, personagens esses que eu nem gostava. Eu gostava mesmo das bruxas, das antagonistas, sempre tive uma atração pela sombra. Eu via muito mais sentido nelas e mais verdade na forma como estavam no mundo e como sentiam do que as protagonistas fofas e delicadas.

Mas, voltando à festa da vizinha, ao ver como eu estava “perfeita” aos olhos de minha amorosa e cuidadosa mãe, o quanto eu seria a criança mais arrumada da festa, mais do que a aniversariante, percebi também que eu não poderia brincar com aquele aparato todo. Tanta pompa e nenhuma honra. Eu seria uma linda criança murchinha em um canto, apenas assistindo as outras crianças brincarem. Então, no auge dos meus 6 anos de idade, na década de 90, quando não tínhamos redes sociais e câmeras digitais em celulares, eu disse à minha mãe que não queria mais usar aquele tipo de roupas.

Sinto até meu corpo relaxando ao lembrar da sensação de quando ela me colocou uma roupinha simples, um conjuntinho de uma malha barata e um chinelo gasto. Fui para a festa brincar e me divertir sem me preocupar em ostentar nenhuma imagem. Obrigada mãe! Isso reforçou algo muito potente em mim!

Que sorte a minha ter crescido em um período em que a comunicação a distância exigia fichas telefônicas. A comunicação era rápida, direta e objetiva. O tempo era, visivelmente, dinheiro. Hoje ainda é, mas o dinheiro não é mais tangível. Aplicativos de banco, cartões, pix e até moedas totalmente digitais separaram nosso corpo, nosso toque, do dinheiro. Sem o tato, a consciência do quanto custa cada coisa, quanto custa cada minuto da nossa vida, essa consciência vai ficando adormecida.

Talvez eu não seja mesmo a melhor pessoa para falar sobre influencers, acredito que sou uma “má influencer” porque meu objetivo é influenciar cada um a não seguir ninguém além de si, dos próprios sonhos e, acima de tudo, da própria intuição, obviamente sem prejudicar o outro. Então, observando o dono do estabelecimento virar as costas, não ouvir a minha voz porque “se não tenho likes, não tenho relevância”, senti pena dele e de quem avalia as pessoas assim se enquadrando neste mundo líquido. O homem perdeu a oportunidade de dar boas risadas porque sou companhia animada!

Então comecei a me questionar “onde as pessoas estão expressando suas dores?” Eu bem sei! Não estão! Estão, em sua maioria, frustradas e seguindo pessoas que fingem ser felizes, que fingem ter vidas perfeitas, para ver se elas lhe dão um caminho para encontrar um alívio para os tantos sintomas que essa vida fake lhes gera. Seus influencers tem roteiros armados do acordar ao dormir. E, mesmo dormindo, estão ganhando likes, visualizações, seguidores… Aliás, com tantas informações e reprimindo tanto os sentimentos, dormir se tornou artigo de luxo. Insônia, ansiedade e o imediatismo de um mundo digital cheio de informações que mudam o tempo tempo, mas nem sempre são relevantes, podem nos levar a esses e tantos outros sintomas.

Por vezes me perguntei se tinha espaço pra mim aqui, nas redes sociais, já que não me encaixo nisso tudo. Não estou sempre feliz! Tem dias tão difíceis, sei que pra todo mundo, mas não sei e não quero aprender a disfarçar. “Será que consigo manter uma constância de postagens?” – me perguntei diversas vezes. Então me dei conta que eu estava pensando em uma sequência de posts que seguissem o padrão da comunidade virtual, do “estar sempre bem”. Comecei a perceber uma cultura da “fakelicidade”, de uma felicidade forjada para engajar posts, ganhar seguidores e visibilidade, mesmo que não seja real. É como as fake news, mas com notícias de uma vida inatingível.

Eu sinto muito! Não estou me desculpando, sinto mesmo! Tanto que mudei meu @ para algo que me representa. Depois de ser chamada, pejorativamente de “emocionada”, criticada por alguém que reprime os próprios sentimentos e mantém a pose de alguém equilibrado, mesmo que para isso, esteja ficando calvo, tendo problemas gastrointestinais e tantos outros sintomas que o estresse e ansiedade causam no corpo e na mente, resolvi aderir a crítica como identidade digital porque realmente sou alguém emocionada. Eu sinto a vida me atravessando enquanto atravesso a vida, não deixo de viver intensamente. Resolvi assumir a @emocio.nanda que é muito a definição de quem sou e de quem aprendi a respeitar como ser. É interessante como a gente tem usado esse artifício de aderir termos pejorativos e ressignificando eles para denunciar que não há problema em ser quem e como somos, o problema está em criminalizar a forma como lidamos com a vida.

E por falar em sentir, volto à questão: desde que comecei a estar por aqui, me pergunto, “cadê o espaço da dor?”. Mesmo aqueles que, supostamente falam de dor, não falam dela em seu estado bruto, daquela dor que dilacera a alma, que faz a gente tocar a morte de quem acreditamos ser, se rasgar todinha e depois ressurgir como um pequeno broto em busca da luz. Não! Não há espaço para a dor genuína de viver. Mesmo a dor tem que ser maquiada, tem que usar filtro, tem que ser “instagramada” para que a pessoa não seja cancelada. Até esse sentir tem que virar uma palestra motivacional de autoajuda como se a gente superasse todas as intempéries da vida como quem resolve uma equação matemática, né?

Por tantas vezes pensei que ao soltar a minha voz, exatamente nesse mundo digital, nesse lugar de uma “falsa-perfeição”, e cutucar a alma em cada vida que eu pudesse alcançar, poderia ser um jeito potente de subverter esse sistema, de usá-lo para dizer às pessoas que sofrem que elas precisam validar os seus sentimentos, que não precisam tentar ser como aquelas pessoas “perfeitas” que seguem, porque aquelas mesmas pessoas também sofrem, afinal elas são pessoas! Eu digo das pessoas por trás das personas. As personas, influencers, performam, as pessoas vivem e viver é lindo, mas também é doloroso. As personas são personagens interpretados por pessoas reais com dilemas reais.

Então, depois de atravessar milhas e milhas em meu próprio caminho e de retornar ao estado bruto do meu ser, a Nanda de 6 anos reapareceu aqui. Ela quer brincar e se divertir, sem se importar em parecer “perfeita” com “um vestido de manga bufante e um sapatinhos de verniz” que não a deixam brincar. Percebi que a forma de trazê-la a tona e integrada com a mulher que me tornei, também com a profissão que escolhi, é fazendo algo que amo e faço muito bem: escrever. Eu sei do quanto minha escrita é potente e convida a pessoa leitora atenta a “brincar comigo” nessa festa chamada vida, desde que ela troque “seu vestido por chinelos”. Mas, para ser escutada, para poder ecoar a minha voz, me peguei tendo que “caçar likes”. Afinal, nos dias de hoje, de que outra forma podemos encontrar pessoas e dizer a elas coisas que poderiam ser úteis às suas vidas diárias?

Seja como profissional, seja como mulher caminhando a própria jornada, sei que tenho muito a contribuir. Mas, nas duas posições, o meu conteúdo não parece ser relevante para quem tem poder de transmiti-lo. Me deparei novamente com a avaliação do meu conteúdo em “likes”, em curtidas. Ao perceber o quanto isso simboliza o sintoma de uma sociedade doente, que não dorme, hipermedicada, que se anestesia de diversas formas para tentar suprimir as dores do existir para tentar caber nesse ideal de gente instagramada que os @ com muitos seguidores têm. Relembrei de tantas conversas que tive sobre esse assunto com colegas psicólogas, médicas, nutricionistas e tantas outras profissionais de saúde sobre isso. São áreas do conhecimento em que nunca almejamos nos tornar famosas, mas, para poder compartilhar um pouco dos nossos trabalhos, das nossas pesquisas e dos conhecimentos que vamos adquirindo com os estudos, com a prática profissional e com a vida, agora temos que aprender a lidar sim com os algoritmos. É unânime entre todas as profissionais que conversei sobre o tema, e não foram poucas, o quanto isso é cansativo e desafiador para nós. Não basta estudar, pesquisar, se aprimorar, temos que aprender esse universo que é totalmente a parte de nossas formações, para poder trabalhar. Mesmo que não seja o objetivo conquistar mais clientes/ pacientes, como no meu caso. A intenção de muitas de nós é disseminar informações de qualidade, já que na internet tem tanta gente falando tantas coisas controversas.

Então decidi que vou sim falar, vou buscar formas de ser ouvida, vou divulgar meu @, não para ser uma influencer de dentes perfeitos maquiados por uma lente de contato, de corpo esculpido no whay que me enoja porque detesto shakes e não sinto que meu corpo precisa estar padronizado. Não vou compartilhar uma rotina de um dia roteirizado porque minha vida não tem esse roteiro inflexível que se usa para organizar posts. Eu me perco e me acho em cada novo desafio da vida e é sobre isso que quero falar! Vou falar para as pessoas que queiram ouvir, não em busca de quantidade, vou buscar qualidade de escuta, de leitores, de ouvintes a quem eu possa servir como uma “má influencer” a quem busque viver em todas as suas nuances. A quem queira abandonar a “fakelicidade” e, com coragem, viver a vida de verdade. Então deixo o convite: “tire o vestido, coloque o conjuntinho batido do dia a dia e a chinela gasta e venha brincar comigo”. Vamos sim falar de felicidade, mas daquela que “a gente acha em horinhas de descuido”, parafraseando Guimarães Rosa. Porque há vida nos desafios da vida e força nos momentos de fragilidade não estampados nas fotos enquadradas tecnicamente para despertar no seguidor a sensação de felicidade plena. Aliás, para fazer uma boa foto, muitas fotos ruins que foram tiradas são descartadas. Assim como, para um momento que você viva com felicidade plena, muitos outros que não foram tão bons foram vivenciados. Então, seja você alguém que quer entregar, ou alguém que consome conteúdos nas redes sociais, lembre-se sempre disso!

Ofereço essa crônica a todas as colegas que trocaram comigo nas partilhas sobre os desafios de ser profissional de saúde e ter que aprender como levar conteúdos às pessoas que podem se beneficiar, assim também a todas as pessoas que esquecem que a vida real não é perfeita como um feed de redes sociais e se sentem deprimidas por não viver da forma como as pessoas a quem seguem parecem viver.

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Nanda Alcantara

mulher, poetisa, capoeira, amante da natureza humana e divina.
mochileira, viajante no mundo e nas ideias.
Psicóloga Junguiana e Psicoterapeuta Corporal CRP 06/123160
Se quiser conhecer meu trabalho como psicóloga é só chegar no instagram.com/apsi_taon
Mas se quiser conhecer a Nanda que trabalha psicóloga, mas é uma caminhante pela vida e pelo mundo em busca de si, chega aqui no instagram.com/emocio.nanda

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Photo by Karsten Winegeart on Unsplash






Mulher, poetisa, amante da natureza humana e divina. Mochileira, viajante no mundo e nas ideias. Psicóloga Junguiana e Psicoterapeuta Corporal. Se quiser conhecer meu trabalho como psicóloga é só chegar no instagram.com/apsi_taon Mas se quiser conhecer a Nanda, caminhante pela vida e pelo mundo em busca de si, chega aqui no @emocio.nanda