Na internet virou cool odiar crianças. O que deu errado na nossa sociedade?

Somos uma sociedade autocentrada. Largamos tudo para buscar a felicidade, tentamos escutar nosso chamado, encontrar nosso dom, mostrar quem somos por meio de roupas, cabelos, tatuagens, corpos e bens. Queremos ser vistos e entendidos. Achamos que somos um grande objeto de estudo porque nossas vidas são únicas. Somos realmente especiais. Ou é nisso que queremos acreditar.

Pode ser uma coisa de geração: somos talvez a primeira de adultos que fazem terapia desde a infância. Pode ser algo movido pelo consumo: o produto da vez somos nós mesmos, o autoconhecimento e o desabrochar das nossas potencialidades. Pode ser algo que só vamos conseguir explicar com a ajuda de filósofos daqui muitos anos. O ponto é: somos egocêntricos pra cacete!

Nada incomoda mais o egocentrismo do que dar de cara com um espelho imperfeito. E crianças são o espelho mais irritante que há porque eles não têm as travas sociais que guiam nossos atos e ditam nossos caminhos, elas simplesmente existem a despeito do que pensam que elas deveriam fazer. E talvez seja daí que brota o ódio que está cada vez mais ganhando adeptos na internet — não sei se as pessoas já têm coragem de dizer isso na vida offline.

Sempre que escuto as pessoas argumentando sobre como as crianças atrapalham o mundo lembro de quando a animação Procurando Dory foi lançada e uma piada de internet começou a ser levada a sério: um post dizia para os pais não levarem as crianças no cinema porque os “bebês dos anos 90” tinham que assistir ao filme antes sem serem atrapalhados.

O problema foi que alguns bebês dos anos 90 não tinham crescido emocionalmente e aproveitaram a deixa para falar como crianças mereciam ser maltratadas caso estivessem no cinema — (aqui tem uma explicaçãozinha sobre o caso). E no meio do caminho a galera que se intitula “childfree” abraçou a ideia para reforçar que crianças atrapalham (link).

É importante fazer um parênteses aqui pra explicar o que é o childfree: começou como um movimento que pretendia questionar a obrigação social de ter filhos que é imposta a todas as pessoas. No Brasil (não sei como é no resto do mundo), o movimento foi se modificando e hoje fala sobre não gostar de crianças, como se isso fosse uma coisa normal e aceitável — imagina falar que não gosta de pessoas negras ou com deficiência?. A descrição da página Somos Childfree, desde 2015 no Facebook e que hoje une mais de 91 mil pessoas, é: “Página CHILDFREE pra quem NÃO quer ter filhos E/OU não curte bebês e nem crianças. Sejam bem-vindos!”. “Não curte bebês e nem crianças”. Não curte um grupo específico de PESSOAS.

Bom, voltando a polêmica do filme lançado em junho de 2016, não soa bastante infantil, bem próximo a uma criança mimada, a atitude que esses adultos tiveram? Pois é. O ponto é exatamente esse: cada reclamação sobre crianças fala mais sobre o adulto não ter conseguido o que queria do que exatamente sobre a criança. Sabe quem explica? Freud, ao dizer que os adultos mantém dentro de si a criança que foram e ela sente inveja do cuidado, atenção e paciência oferecidas a uma criança dos dias de hoje.

O movimento ganhou bastante visibilidade do último ano pra cá. A discussão sobre a maternidade compulsória é extremamente necessária (escrevi sobre ela, inclusive) e faz parte dos questionamentos que temos que fazer para criar uma sociedade mais justa. Só que o que aconteceu com o movimento foi se tornar um agregador de pessoas que acreditam que crianças devem ser excluídas da sociedade, e com elas suas mães. Misoginia pura.

A criança perfeita

O ponto levantado pelos childfree é que crianças não sabem se comportar. Eles ignoram que a comunicação se dá de maneira diferente em cada fase da vida e que crianças choram porque não têm acesso a um grande repertório de palavras que possam traduzir sentimento — e em algumas fases elas ainda não sabem falar. No mundo adulto essa comunicação truncada se resolve normalmente pela violência, ironia ou exclusão.

Se cada mãe e pai foram educados de maneiras tão diferentes, será que existe mesmo a tal criança perfeitamente educada ou ela é como o modelo de mulher perfeita das revistas de moda? Qual seria o padrão da criança bem educada? Silenciosa, agradável, limpa e bem vestida, que não questiona e é “fácil aos olhos”? Basicamente o que exigem de mulheres e é criticado no feminismo, não?

Por que então crianças deveriam ser criadas dentro desse imaginário inalcançável? Por que cobrar uma perfeição que não existe de pessoas que estão descobrindo quem são? Quão cruel é isso?

A observação, porém, mostra que adultos cobram de crianças um comportamento que não existe nem entre eles. Um grupo de adultos em um bar faz mais barulho do que um grupo de crianças brincando. Uma mesa de adultos em um restaurante pode ser mais incômoda do que uma mesa com crianças. A cobrança de perfeição e não incômodo é feita apenas para as crianças.

O recado é: adultos podem tudo porque são detentores de diversos poderes, enquanto crianças dependem de outros. A lógica também faz sentido se pensarmos em pessoas em situação de rua, por exemplo, e na justificativa que algumas pessoas dão para não ajudar com dinheiro: ele vai gastar em algo que não deve. Como se a medida do mundo fosse aquele adulto em questão e seu estilo de vida.

Só quem pensa como eu tem valor

Cada adulto é único, teve experiências diferentes e acredita em coisas diversas. Minha avó acreditava (e talvez ainda acredite) que se uma criança tem vontade de alguma coisa e não tem acesso a ela vai ficar doente. Ela sempre deu o que estava comendo pra a criança que olhava. Sempre comprava balas a mais, um chocolate extra. Ela não queria ser a responsável por deixar uma criança doente. Não tem embasamento científico, mas todo mundo acredita em uma ou outra coisa que é absurda para alguém. E essa ideia da criança ficar doente, por exemplo, é cultural e muito forte em algumas classes sociais.

Quando a gente ironiza uma pessoa que diz isso estamos sendo os colonizadores que chegaram na América e se chocaram ao encontrar índios: “ó, que pessoa atrasada! Preciso salva-la, mas antes vou tirar um proveito”. Os colonizadores do passado trocaram itens valiosos por porcarias europeias, a gente divulga prints e espera os likes chegarem.

A gente ri do diferente, expõe, acha graça, mas quando é questionado sobre aquele ato se sente no papel de vítima. Na internet os papeis mudam com uma fluidez assustadora. Quem achou engraçado expor o outro se sente vitimizado porque alguém resolveu apontar o dedo de uma forma inesperada — o caso dos prints da colecionadora e da mãe são um ótimo exemplo disso (link da colecionadora, que expôs os prints, se explicando e dando sua versão da história).

Essa tendência de excluir o diferente ganhou espaço até no turismo. A jornalista Mônica Nóbrega conta em sua coluna do Estadão que companhias aéreas criaram as chamadas “quiet zones”, que são basicamente fileiras que não recebem menores de 12 anos, além de hoteis e restaurantes que não aceitam crianças. Como se adultos fossem agradabilíssimos… O ponto dela é super válido:

“A verdade é que, sob o pretexto de que empresas privadas podem escolher qual público querem atender, uma parte da indústria do turismo pratica e dissemina o discurso de ódio contra crianças. Soa pesado demais? Pois essa postura de discriminar crianças, de considerá-las inconvenientes e ainda divulgar isso é só mais uma evidência de um tipo de pensamento individualista, que rejeita as diferenças e considera que o outro tem menos direitos. Discurso de ódio contra crianças, sim. O turismo precisa falar sobre isso.
Isso não é sobre leis. Não é sobre querer ou não ter filhos. É sobre em que tipo de mundo queremos viver. Como disse em recente entrevista um dos meus escritores preferidos, o britânico Ian McEwan, “alguém que não pode tratar bem as crianças está em bancarrota ética”.”

Quem é responsável por educar as crianças?

Quando você se torna mãe (ou pai) você não ganha poderes especiais e um toque extra de sabedoria. Você é o mesmo adulto que era, mas agora com uma criança por perto. Isso quer dizer que existem pais e mães imaturos, inseguros, com problemas de comunicação e muitos outros. Se a gente levar em conta que a maternidade é algo compulsório na nossa sociedade nem precisamos nos perguntar “mas por que teve filho, então?”, certo?

Pessoas horríveis também reproduzem. Pessoas egoístas. Pessoas violentas. Pessoas sem a mínima capacidade de aceitar um não. Pessoas sem nenhum acesso a teorias pedagógicas. Pessoas incríveis. Pessoas na média. Pessoas se reproduzem.

Existe uma ideia de que todas as pessoas são responsáveis por educar uma criança. Toda a sociedade. Isso é realmente assustador e vai na contramão da expressão mega popular “quem pariu Mateus que o embale”. As respostas a isso são as mais variadas, mas giram em torno de um mesmo tema: eu, que escolhi não ter filhos (ou já tenho os meus) vou ter obrigação de ensinar o filho dos outros?

Não, pelo menos não ativamente. A educação não se dá apenas de forma direta. Somos afetados por diversas maneiras diferentes de comunicação e o exemplo talvez seja a mais forte delas.

Lembro que durante um bom tempo escolhi roupas que me fizessem sentir como eu achava que se sentia uma mulher que vi uma vez no shopping. Ela parecia segura e confiante, era bonita, a roupa combinava com ela e era fora dos padrões, o que me dizia que ela era forte. Eu a vi por 1 minuto, no máximo, e até hoje lembro da maneira que ela caminhava. Essa mulher me educou. O ato dela caminhar em um shopping e ignorar os olhares que estavam sobre ela me fez entender que eu podia ser assim forte também. E sou até hoje.

É por isso que uma criança é responsabilidade de toda a sociedade: porque ela pode descobrir fora de casa que existem caminhos que fazem mais sentido pra ela, que dialogam com o que ela sente. E aí não é exatamente uma escolha de cada um participar dessa educação, mas compreender que isso já acontece mesmo contra a sua vontade.
Adultos mimados

Bens materiais são um direito da pessoa. Pra mim essa é uma frase engraçada nesse contexto porque os adultos tentam colocá-la antes do direito a dignidade que uma criança tem garantido por lei. Sair para jantar é mais importante do que a criança pedindo dinheiro na rua. O tênis novo vale mais do que entender que a criança não derrubou o sorvete nele porque queria, mas porque está desenvolvendo a coordenação motora. Ter uma viagem de avião silenciosa é mais importante do que o desconforto que uma criança pode estar sentindo ali dentro — se fosse um adulto em uma crise de otite, por exemplo, o tratamento seria de generosidade. Adultos têm necessidades urgentes, crianças fazem birra.

Adultos são preguiçosos e acham que tudo tem que vir pronto. Agimos como se pessoas fossem comandadas por controle remoto e esperamos que elas ajam de acordo com nossos desejos. Esquecemos como é doloroso o processo de aprendizado e de como é assustador entender as normas sociais que regem a convivência.

Se cada um de nós lembrar de quando era criança e precisou comprar algo na padaria pela primeira vez — algo que parece simples: ir lá, chamar o atendente, pedir o que se quer, pegar, pagar, conferir o troco e voltar pra casa — vai lembrar também do medo, do frio da barriga, da sensação de não pertencimento.

Crianças se sentem assim o tempo todo. Falei disso em um post no dia em que acompanhei uma excursão de crianças de 6 e 7 anos ao museu:

“Imagina você ter entre 6 e 7 anos e receber olhares feios simplesmente porque você existe? Imagina quão confuso é você tentar entender porque as pessoas são grossas, esbarram sem pedir desculpas e empurram sem pensar duas vezes?
A gente tá vivendo um momento político horrível, mas que está nos ensinando, entre outras coisas, a ocupar a cidade, a ver o espaço público como nosso. Em SP, que é onde estou, esse sentimento de que a cidade nos pertence é mega novo. Foi e ainda é difícil ocupar esses espaços, não é? Então porque raios a gente dificulta a apropriação das crianças?”

Se as crianças agem de maneira mimada, se não conseguem lidar com as negativas, se recusam abrir espaço para o novo, se fazem birra e falam alto, talvez elas só estejam copiando o que veem na sociedade. Quantas vezes a estrela do grupo de adultos não é o cara que fala alto, faz piada e aponta o outro? Crianças performam o que veem ao seu redor e se a gente olhar para a sociedade vamos encontrar nos adultos os mesmos comportamentos que incomodam tanto nas crianças.
“Não sou obrigada a aguentar criança chata”

Nem adultos chatos, na verdade. Porém, quando você se depara com um adulto chato você pede para que ele seja retirado do ambiente? Você pede para que parem de servir bebidas ao cara que está falando alto na piscina do hotel? Você diz que uma mulher não deveria estar naquele ambiente porque ri alto demais? Você fala que uma pessoa em cadeira de rodas não deveria frequentar um restaurante porque é necessário afastar algumas cadeiras para que ela consiga passar?

Usamos medidas diferentes para crianças e adultos. Adultos são perdoados por deslizes e crianças são estigmatizadas. Adultos discutem opressão e grupos minimizados, crianças são silenciadas. Adultos podem falar o que gostariam e como gostariam, crianças precisam simplesmente aceitar.

Se a gente vive em uma sociedade regida pelo poder de compra sabemos como é feita a divisão entre quem tem voz e quem não existe para certos olhares. As crianças, nesse contexto, não existem. E por não existir quero dizer que elas são colocadas em um não-lugar — local esse bem próximo a diversos grupos minorizados, mas com o agravante da falta de repertório para entender o que está acontecendo — e esquecidas ali. Seus direitos são esquecidos e passam por cima de cada um deles com a desculpa de que é pelo bem da criança. Não é. É pelo egocentrismo do adulto.

Para que a criança seja aceita em qualquer ambiente e não sofra com a pressão que adultos fazem para que ela não haja como alguém que está aprendendo — o processo de aprender, pelo jeito, é algo bastante ofensivo para alguns adultos — as famílias precisam ensinar técnicas que parecem educativas, mas são limitantes. As mães sabem disso, mas proteger os filhos de humilhação e violência é um foco mais importante. O relato abaixo foi publicado pela mãe e escritora Fabrina Martinez:

“Eu sou mãe e sempre ensinei minha filha que ao entrar em qualquer espaço ela deveria colocar os braços para trás e não tocar em nada. As pessoas achavam que eu fazia isso para preservar seus objetos.
Eu fiz isso pra preservar a minha filha.
O mundo da criança é tão pequeno quanto ela. No geral, as pessoas são mesquinhas e não entendem que crianças são pessoas em formação. Ensinar minha filha a andar com a mão para trás foi uma forma de alargar o mundo dela. E para que o mundo dela fosse maior, ela teve que ser menos ela. Menos criança.”

O ódio é pop

Ir contra a maré sempre foi a saída mais fácil para ganhar notoriedade. Em tempos que vemos grupos minorizados alcançando a voz pela qual lutam há décadas, humoristas que se autodenominam “politicamente incorretos” surgem aos baldes.

Em um sociedade que cobra a reprodução como um item na lista do sucesso e impede que mulheres abortem por uma teórica preocupação com a que criança que pode vir a se desenvolver, não há caminho mais simples do que não gostar de crianças para poder se dizer “polêmico”.

(Não que gostar de crianças tenha sido realmente um lance algum dia. O mais próximo disso é ter crianças como acessórios, seja porque elas tê uma certa aparência perfeita, são fofas ou agem como mini-adultos silenciosos)

Odiar é fácil. Você simplesmente pega o que te incomoda no outro e torna isso algo enorme. É fácil fazer e fácil consumir. Todo mundo se incomoda com alguma coisa em uma criança — porque a gente se incomoda com coisas em outras pessoas e isso é normal — e falar sobre essas coisas coloca a pessoa em uma aura de corajosa e destemida quando na verdade ela é só mais uma pessoa se rendendo ao fácil.

No fim das contas, não é sobre amar crianças, é sobre respeitar pessoas e entender que nem todo mundo vai te agradar ou agir da maneira que você vê como certa.

No momento político e social que vivemos, com polarizações, extremismo e ódio pautando todas as decisões o revolucionário é ser responsável, fazer sua parte e entender que para existir um mundo em que todas as pessoas possam viver em paz e segurança tendo suas diferenças respeitadas é necessário dar o primeiro passo fazendo uma coisa simples, mas que de tanto perdermos a prática se tornou complicada: humanizar o outro.

Será que vamos conseguir sair dessa?

Imagem de capa: Shutterstock/Maria Symchych






Carol Patrocinio é jornalista, feminista, mãe que educa sem gênero e duas vezes (2015 e 2016) indicada como uma das mulheres inspiradoras pelo site Think Olga. É também co-fundadora da Comum. Facebook: https://www.facebook.com/carol.patrocinio Medium: https://medium.com/@carolpatrocinio Newsletter: http://eepurl.com/b1pyhr