Orlando é aqui!

O terrível acontecimento recente em Orlando, quando dezenas de pessoas foram mortas e feridas por homofobia, deve-nos levar à reflexão. Qualquer vida, segundo Sócrates, que não é refletida, não vale a pena ser vivida. Não há como negar a homofobia presente na tragédia, ainda que possa ter havido raízes religiosas por trás dela. Todo bom estudante de História, Filosofia, Ciência da Religião, Psicologia ou afins sabe que as três grandes religiões monoteístas – judaísmo; cristianismo e islamismo – trazem em seu discurso e em sua prática a rejeição da homossexualidade e, ainda mais, do sujeito que se assume como homossexual.

Mas Orlando é também aqui. A homofobia está presente no povo brasileiro, de raízes católicas, dito festeiro e bom anfitrião. Cerca de quatro homossexuais são assassinados diariamente na cidade em que moro, Salvador (Bahia). O número pode variar um pouco, para mais ou para menos, nas outras metrópoles, mas a realidade é a mesma. Nas ruas, nos shoppings, nas escolas, nos ambientes sociais diversos, fora dos guetos LGBT, os homossexuais não podem tranquilamente manifestar o seu desejo, o seu amor, até mesmo o seu comportamento, como é o caso dos homossexuais efeminados, que chegam a ser discriminados entre seus pares, tamanha é a força do preconceito e do machismo.

As ciências psi sabem e declaram oficialmente que a homossexualidade não é doença. Do ponto de vista jurídico, na grande maioria dos países ditos democráticos, não é crime. Para alguns teólogos e líderes religiosos, embora minoritários, não é pecado. A homossexualidade é um fato. O próprio discurso do atual Papa Francisco ameniza séculos de intolerância contra os gays. Ele se declara aberto ao diálogo e pede o mesmo para seus bispos; padres e agentes de pastoral. Chegou até a receber em suas audiências abertas ao público um transexual.

A homossexualidade é uma variante da sexualidade humana. Para a Psicanálise, tanto a hétero quanto a homossexualidade são construções inconscientes do sujeito: não são escolhas conscientes e livres ou frutos da educação racional dos pais, escolas e grupos religiosos. Se assim fosse, só haveria heterossexuais. Segundo Freud, a bissexualidade é inata, mas vamos construindo nossa identidade de gênero e orientação sexual a partir de nossas relações primitivas inconscientes, que desembocam no Complexo de Édipo, quando o desejo é finalmente (ou quase finalmente, pois ele será reelaborado na adolescência) estruturado.

Para o criador da Psicanálise, não há nenhuma vantagem ou desvantagem em alguém ser homossexual (ou heterossexual). Simplesmente, é uma realidade. Para ser feliz, o sujeito humano, seja ele quem for, deve aceitar sua própria subjetividade, singularidade, identidade e desejo. Não somos felizes se não nos lançamos no mundo da linguagem e do desejo, na esperança de construirmos relações afetivas e/ou amorosas profundas. A sociedade, em particular a religião, não consegue, entretanto, lidar com a diversidade. Somos bilhões de pessoas, neste planeta, como querer que sejamos todos formatados de uma mesma maneira? Tal atitude ideológica é irracional. A questão, portanto, não está no homossexual. Está na sociedade intolerante. Estima-se, por exemplo, que 220.000 gays foram exterminados durante o nazismo.

A perseguição aos gays remonta historicamente à cultura judaico-cristã. A religião sempre exerceu um papel preponderante na formação do indivíduo – para o bem e para o mal. Mesmo as pessoas, que se declaram ateias ou agnósticas, ou aquelas que não foram educadas numa família religiosa, são afetadas pela moral religiosa reinante em determinada sociedade. Todos nós somos continuamente questionados por valores e princípios, leis e normas sociais. Mais ainda: carregamos interiormente um Censor (o superego freudiano) que nos dita o que devemos ou não realizar em prol de nossa própria felicidade. O superego reproduz o que as famílias e as organizações religiosas pregam para manter algum controle sobre o indivíduo.

A ironia e a contradição é que terminamos por aceitar, baseados neste superego, interiorizado a partir da moral externa, prescrições e proibições que não são baseadas na lógica, na aceitação da diversidade humana ou do desejo pessoal. São baseadas em nome da “fé”, com seu dogmatismo próprio, quando o indivíduo não pode nem mesmo questionar. Deve simplesmente aceitar em nome de uma Autoridade divina, que não é divina realmente, mas humana. Todos os livros ditos sagrados, todas as normas religiosas e todo o discurso e prática, em nome da religião, foram e são manifestações culturais: frutos do humano. Se os fiéis não se deixassem alienar tão facilmente, perceberiam que as religiões mudam com o tempo, de modo sutil e lento.

Matar (ou matar seu próprio desejo) homossexual em nome da moral, dos bons costumes e da fé deveria ser visto como, de fato, é: um crime. Crime acobertado. Por quem? Por autoridades, religiosas ou não. Crime que faz parte do discurso familiar: “preferia ter um filho morto a homossexual”. Como somos produtos de nossa sociedade e de nosso tempo, tendemos a nos adaptar a tais práticas e falas, especialmente se vêm dos pais, familiares, professores ou líderes religiosos, que estimamos. Para viver sua própria vida, normalmente, o sujeito homossexual precisa rebelar-se contra o que ou quem o reprime. Porque, como se sabe, o opressor nunca dá a liberdade ao oprimido. Historicamente, é o oprimido que deve buscar sua liberdade.

Ao contrário do que hoje pretendem políticos, em nosso país, assuntos como gênero, sexualidade, diversidade e afins deveriam ser ensinados nas escolas desde cedo. Evitaríamos muito sofrimento individual e social se todos aprendessem verdades como: a sexualidade de cada um de nós é composta de vários elementos. Primeiro, o corpo. Segundo, o psiquismo, que começa a atuar sobre nós desde o ambiente intra-uterino. A Natureza e a Cultura não costumam trabalhar com absolutos: preferem sempre a variedade; as imperfeições; as diferenças – a diversidade, enfim. Essa diversidade aí presente, atualmente mais manifestada do que em épocas anteriores e buscada na luta por direitos humanos e civis por uma grande parcela da população, deve ser respeitada, inclusive e principalmente por aqueles e aquelas que têm dificuldade de lidar com a alteridade.






Paulo Emanuel Machado é psicanalista, escritor e professor. Tem dois romances publicados: A TEMPESTADE (Editora Scortecci, 2014) e VOCÊ NÃO PODE SER O OCEANO (Edição independente, 2015), ambos baseados em relatos de pacientes e alunos. O primeiro sobre abuso sexual; o segundo sobre a travessia difícil da adolescência. Também possui artigos publicados e contos em antologias. É de Salvador, Bahia, nascido a 10 de janeiro de 1960.