Quando minha família decidiu sair do meu armário

Por Salomão Cunha Lima

Levei 10 anos para sair do meu armário interior. Para entender que minha construção de família seria diferente da tradicionalmente estabelecida na sociedade. Para romper com os padrões culturais em que estava inserido. Para, pós uma profunda análise de meu ser, adaptar os valores e convicções já adquiridos por mim a uma nova convenção moral com a qual me identifico nos dias de hoje, a moral do respeito e do amor.

Ao me compreender, quis que minha família rapidamente assimilasse minha sexualidade. Não em questão de anos, mas de horas. Quis que meus pais me dessem carta branca para amar e ser amado, que me propiciassem o aval para ser quem eu sousem retirar uma gota do orgulho que sentiam de mim. Quis que me dessem uma carta de alforria, estando eu escravizado por meu próprio desconhecimento do potencial que poderia ter ao me afirmar enquanto ser humano sendo, inclusive, gay.

A saída do armário não é só nossa, mas também daqueles que estão, teoricamente, destinados a nos amar. E estas pessoas estão, em sua essência, na instituição social mais antiga e cujo núcleo está mais próximo dos indivíduos: a família.

Parte de nós nasce em famílias emocionalmente e financeiramente estruturadas, outros não. Parte de nós nasce emfamílias religiosas, extremamente envoltas em um ambiente de puro conservadorismo, outros não. Parte de nós nasce em famílias, outros sequer sabem o significado desta palavra, ou por terem perdido seus entes preliminarmente ou por simplesmente serem abandonados – para não dizer descartados – pela condição de sua sexualidade, identidade e expressão de gênero.

Precisava entender que, assim como nós, nossos pais também precisam de seu tempo de maturação. Passa-se a fase da raiva, da culpa, da preocupação quanto ao futuro, do medo de ver os filhos sendo discriminados, do questionamento quanto às projeções já realizadas no que se refere a esta construção familiar heterossexual e heteronormativa.

Por outro lado, e não podemos desconsiderar isso, há também pais que estão preocupados meramente com eles próprios (ou nem com isso estão). Com as possíveis piadas que surgirão na pelada de sábado por ter um filho “viadinho” ou uma filha “sapatona”. Ou com os olhares tortos que surgirão na igreja pelo fato dos filhos estarem “des-viados” e, consequentemente, destinados a morrer no inferno (Que Deus é esse?). Com as reuniões familiares em que terão de lidar com a realidade de conviver com filhos e parentes que não vestem máscaras ou roupagens impostas pela sociedade.

Sendo bem honesto, no contexto cultural em que vivemos, até entendo suas reações. Mas não me conformo com a manutenção delas, pois agir dessa maneira apenas retroalimenta este sistema machista, conservador, misógino, homo e transfóbico, hipócrita.

Paro e pergunto: qual o nosso papel para mudar este cenário? Se não partir de nós transformarmos essa realidade, sobretudo dentro de nossas casas, não avançaremos como poderíamos naincessante busca por respeito e luta por igualdade de ireitos civis que nos compete ter em sociedade.

Muito se tem falado em diversidade no ambiente corporativo, na ampliação de políticas públicas voltadas à população LGBTQIA, no casamento homoafetivo, na criminalização da homo e transfobia, no direito de utilizar o nome social em documentos de identificação. É fundamental que os organismos internacionais, governos, empresas e demais instituições busquem fomentar ambientes mais diversos e inclusivos. Mas se não as transformarmos as famílias, principais responsáveis pelos ditames da sociedade, não conseguiremos garantir inserção de forma justa, digna e igualitária.

Para me aceitar, meus pais levaram os mesmos 10 anos que eu levei para me assumir gay. Foi um processo árduo e paulatino. Requer paciência e sabedoria. Hoje,sinto o carinho, amor, orgulho e força que preciso deles para viver em paz, liberdade e felicidade. A força, somada ao empoderamento e resiliência que todos devemos ter, gerará a construção de novas famílias e entrelaçamentos sociais que nos farão cada vez mais humanos, felizes, sociáveis e, por que não dizer, produtivos.

Meus pais e familiares, finalmente, saíram do armário em que eu estava outrora trancado. Não foi e nem será fácil, mas agora brindamos a felicidade sem naftalina, poeira, mofo e traças deste armário velho chamado “preconceito nosso de cada dia”. E que minha nova família possa ser constituída sob as bênçãos já concedidas pelos meus pais. Família homossexual será. Lidem com isso.

Imagem de capa: Shutterstock/Iconic Bestiary

TEXTO ORIGINAL DE BRASILPOST






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