CAPS: dessacralizando práticas estereotipadas

Em minhas andanças por vários CAPS (a priori: Centro de Atenção Psicossocial), ao trabalhar com dependentes químicos, crianças e adultos psicóticos, confirma-se uma antiga hipótese: assim como “psicose”, “cidadania”, “manicômio” e “anti-manicômio”, a nomenclatura CAPS sofreu um processo de esterilização por parte dos discursos hegemônicos e, atualmente, não quer dizer mais nada. Repetidas vezes converso a respeito com o pessoal que trabalha nestas instâncias e saio sempre com a impressão – que não sei se é cômica ou trágica – de que ninguém sabe ao certo o que está fazendo.

O que acontece? Muitos desses profissionais são dedicados e interessam-se o suficiente pelo seu trabalho a ponto de fazerem supervisões clínicas (que são custeadas com dificuldade) ou cursos de extensão em Psicopatologia, Psicanálise ou Saúde Pública, ou outra tentativa entre diversas de validar a própria perplexidade do trabalho, apelando para o velho colo institucional. Portanto, o efeito entorpecente dessas “palavras sagradas” não se deve a deficiências na formação profissional ou a falta de interesse, ou até mesmo a complexidade dos desafios da clínica, mas a um processo mais sutil que nos propomos a problematizar a seguir.

Penso que o primeiro passo é lembrar que, apesar dos cartesianos discursos dos administradores do Estado ou da beleza quase evangélica das cartilhas do Ministério da Saúde (em sua ingenuidade e clareza esquemática), geralmente quem faz essas cartilhas não é quem atende nos aparatos do Estado – ou fez isso há tanto tempo que já não se lembra mais de como era.

Ao lermos esses manuais ficamos com a impressão de que quem os escreveu tentou fazer como na passagem bíblica em que Deus criou o mundo: Ele dizia “faça-se” e a coisa aparecia pronta. Da mesma forma: façam-se os CAPS. Façam-se os grupos com os familiares. Façam-se a aderência ao tratamento. Façam-se a ambiência, o profissional de referência, o projeto terapêutico singular, a transdisciplinaridade. E faça-se a cara de que todos sabemos do que estamos falando, afinal, as palavras sagradas são tabus, e perguntar pode ser mal interpretado assim como questionar, e questionar pode ser visto como confrontar, e…. temos todos nossas contas para pagar no final do mês.

Aí encontramos um mecanismo muito eficiente de esterilizar completamente qualquer ideia nova: transformemo-la em conceito canônico, em palavra de ordem, em senha para com que a repitamos indefinidamente até embotarmos nossa capacidade de duvidar.

Proponho, assim, o início de uma dessacralização: vamos conversar sobre essas palavras, sobre essas ideias. Vamos correr o risco de descobrir que algumas não se adequam mais, outras são potentes se articuladas novamente com alguma virulência. Vamos começar com algumas conversas sobre o que chamamos de saúde, e, portanto, doença, e, portanto, tratamento.

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Médico especialista em Psiquiatria Clínica pelo HC FMUSP (1985) e Mestre em psicologia clínica pela PUC-SP, com a tese "De Pompéia aos Sertões de Rosa: um percurso ao longo da Clínica Psicanalítica de pacientes com diagnóstico de Esquizofrenia" (1999).